quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Querida Anita

Confesso, Anita.
Sua última carta me desarrumou. Algo me dizia que você desconfiava da minha traição. Confesso.
Tenho roubado incessantemente todas as cartas que você envia para Caio. Tenho me apropriado incessantemente do nome dele. Sem que ninguém soubesse, passei a escrever para você e para outras pessoas utilizando esse nome. Sentia que você dizia coisas para me testar, para ver se eu abandonava o jogo. Mas não pretendo abandonar o jogo. Me perturba sua insistência nesse amor. Sua última carta me alegrou. Caio não merece seu amor. Quantas cartas inicialmente você escreveu e às quais ele jamais respondeu? Ele permaneceria mudo, não fosse eu. Será que você sabe quem eu sou? Creio que não. Tenho meus motivos para crer nisso. Não tenho mais como abandonar esse nome. Eu também sou Caio Marques. E nenhum de nós é mais verdadeiro que o outro. Eu te traí. Eu ainda te traio., mesmo confessando minha traição costumeira. Ou antes, você acha que eu sou um traidor. Para mim, não te contar o que fiz não significa traição, significa que aquele não era o momento para você saber quem eu realmente sou. Por que você não comentou nada quando eu confessei, por meio de Caio, como se eu fosse Caio, que já tinha também namorado homens? Não sei se fiz isso apenas para destruir a imagem idealizada que você tinha dele. A traição pressupõe um pacto anterior e a quebra desse pacto. Eu não te traí. Nosso pacto, por mais déjà vu que isso seja, faz-se em cartas. E nossas cartas são mapas que desenhamos para traçarmos nossas vidas. Não me  risque das suas cartas. Te amo assim. Por escrito. Inteiramente seu,
Caio Marques.
PS: sobre o ipê te escrevo depois.

domingo, 12 de setembro de 2010

De volta aos ipês

Querida Anita

Saudades. Guardei durante alguns dias comigo em minha bolsa minha máquina fotográfica. Sabia que dia desses flagraria a beleza amarela dessas árvores em meio ao azul do inverno. Essas árvores: os ipês. São para você.



Os momentos não são efêmeros. Não acredito na perda. Ingenuidade. Imaturidade talvez. Dois dias atrás, me recusei a brindar aos encontros e às despedidas. Brindei somente aos encontros.

Em que medida o ipê na foto que fiz é diferente do ipê que você viu meses atrás? O ipê está aqui em sua plenitude.

Te escrevo para dizer que acredito nos encontros. Talvez você esteja acompanhada daqueles olhos que te miraram tão intensamente. Às vezes me pergunto se erro por estar longe de você. E a pergunta sempre traz a resposta de que nosso encontro fulgurou como o ipê. Manter o encontro por mais tempo do que ele poderia suportar seria deixá-lo num estado vegetativo. E queremos, ambos, o fulgor. Um fulgor que não rima com paixão. Não nesse momento. E esse fulgor nos transporta para um tempo outro e um espaço outro.

A cada dia que passa, mais pessoas se acomodam e buscam o acúmulo: de bens, de valores, de afeto. Busco a intensidade, sobretudo no que ela tem de diverso da quantidade. E assim soa como estupidez, deixar de lado o que se tem de bom para buscar algo de ainda melhor.

Divago.

Um beijo carinhoso do sempre seu

Caio Marques

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Ao Raul

Há em mim uma forte necessidade da letra. A vida ativa um espectro de palavras.
Adoro cartas. São para mim, neste momento, a possibilidade de falar para alguém que tem um nome, mas, ao mesmo tempo, para todo e qualquer um que venha a ler estas palavras.
Começo. Na despedida, já estou vestido, e você pega a manga esquerda da minha camisa. Abotoa atentamente meu punho. Busca a outra manga – haveria desejo seu de outro punho a ser abotoado?
Não há.
Leio isso: manifestação de carinho da sua parte, desejo de me ver arrumado, bonito. Detalhe de suma importância. Sim, foi isso que li. Você também aprecia os detalhes, são de suma importância. Vi, então, você, atento, lendo as linhas da mão de uma folha. Vi você extasiado com o sopro da brisa – e me reiterava, não é a brisa, é o sopro – àquela hora da manhã quando a janela do quarto e a porta da cozinha estavam abertas. Vi você absorto, tentando se aproximar da sensação do peso da caneta sobre o papel e do peso da sombra sobre a parede.
Assim foi nossa noite. Colorida pela balbúrdia do tato. E os nervos e músculos ativados do seu corpo rescendiam um aroma constante e rico. As palavras, o queixo, o peito, a axila, e também a ponta dos dedos, as costas, uma dobra, uma pinta, tudo corpo. O sexo também.
Certa vez certo poeta me disse que tratava as palavras para que fossem um lago de superfície cristalina. Assim, o leitor veria toda palavra em sua profundidade. Não lembro bem se foi um escritor, mas me disse cuido da


palavra bruta
sem qualidades
sem carregamentos
desprovida de autonomia

palavra bruta
seus resíduos
suas contaminações
arranhões e cicatrizes de todo tipo
rastos de seu atrito com a realidade
tudo são pertencimentos

sou a minha palavra bruta


e um dia serei quem digo ser
ainda que eu seja
hoje
este que digo ser
um dia
amanhã
minha palavra bruta correrá em minhas artérias
irrigará todo meu corpo
amanhã
quando acordar
uma preposição correrá entre os dedos das mãos e dos pés
artigos em meus ouvidos
nas pontas dos dedos vibrarão substantivos abstratos
e meu corpo terá sido palavra
e minha palavra terá sido corpo.

Abraço forte
do seu
Caio

terça-feira, 8 de junho de 2010

Resposta à Carta de Anita sobre os ipês

Anita.

O que é o tempo? O que você perdeu por não fotografar o ipê? Os detalhes rajados das flores? Seu viço? Sua força? Sem a foto fica a lembrança que lentamente se esvai. Até sumir. A lembrança e o ipê. Com a foto o que você teria? O viço? Os detalhes rajados das flores? Sua força? O que a foto garante?


Então imagino o que teria acontecido caso eu não tivesse viajado para o norte e numa espécie de lampejo, me visse no espelho e se descortinassem meus limites. Mas esse é talvez o seu sonho escrito por mim nesta carta para você. Esta é a carta que você queria que eu escrevesse. Mas não tive esse lampejo. Não se descortinaram meus limites. Fui para o norte e, quando voltei, você havia partido. Então imagino: o que teria acontecido se você tivesse me esperado?


O que você ganhou por não fotografar o ipê? O que ganhamos por termos a relação que temos? Cada um dentro dos seus limites? Você, então, me olha com seu olhar cansado da minha dificuldade de ver meus próprios limites – e você já existe em mim, há uma Anita que não cessa de se remexer em mim – e me pergunto se isso não é fácil demais, se isso não é apenas retórica. Seria fácil – talvez até bom – se a cada opção que fazemos na vida estivéssemos sempre pensando em tudo o que ganhamos e jamais no que perdemos. Um modo que as meninas e moças de antigamente conheciam bem. Um modo Pollyana de ser. Talvez seja isso. Ou talvez seja apenas um “ça m’est égal” e eu seja outro Meursault. Um Meursault real.


Mas eu estaria mentindo se dissesse que não vivo assombrado pelos fantasmas de tudo aquilo que não vivi. Há sobretudo um: nunca te falei da paixão que senti por um colega de graduação chamado Luiz Eduardo. Sim, Anita, um homem. Luizé, como eu brincava, usava aliança de noivado, mas na faculdade todos sabíamos de sua preferência pelos homens. A aliança era um engodo para a família. Luizé tinha um companheiro de longa data, com quem dividia um apartamento. Lima, como ele se apresentou uma vez, era apaixonadamente tolerante. Luizé tinha, vez em quando, alguns namorados. Nunca tive coragem de dizer de modo explícito que o amava.


Num domingo, depois de apresentar Édipo rei, aproveitando que Lima estava viajando, Luiz Eduardo preparou seu banho e não abriu a água, só o gás.


Assim foi.


Fiquei durante anos assombrado pelo meu silêncio, pelo amor que não vivemos – no momento do velório, uma amiga em comum expressou sua incompreensão diante da dificuldade que sentíamos em dizer que nos amávamos. Não o fotografei. Não o beijei.


Como lidar com esses fantasmas? Teria sido feliz, caso tivesse vivido com Luiz Eduardo? E mais: o que significa meu amor pelos homens? Sim, Anita, houve outros depois do Luiz Eduardo. Teria sido melhor estar até hoje casado com Maria Emília?


Seu olhar novamente me inunda e você me diz: não estou falando de Luiz Eduardo, Maria Emília ou seja lá quem for. Estou falando de Anita.


Então finalmente vejo meus limites e te digo: estamos em tempos diferentes. Não são velocidades diferentes. Nossos tempos são díspares. Não vou fazer uma sessão de psicanálise com você agora, mas não tenho condições afetivas de viver com você uma relação amorosa de companheirismo. Não que você seja mais evoluída do que eu ou que esteja mais preparada do que eu. Não me sinto disposto para isso.


Aguardo sua resposta.


Amo este nosso diálogo


Forte abraço.


Caio Marques

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Brasília, 30 de abril de 2010
Fernando e Paulinho.
Digo que é possível a vivência de certa ausência de remetente e de destinatário – simultaneamente ou separadamente – tal como foi escrito. Digo também que essa ausência é uma vaga lembrança em mim. Hoje recordo de uma frase famosa muito presente em mim e que figura numa carta de Caio para Anita e noutra (que é igual e outra simultaneamente) de Alberto para Maria Cláudia. Ambas estão no blog
http://albertotibaji.blogspot.com . Call me Ishmael. Após a lista de qualidades que Fernando me enviou (ou seria uma carta? Ou uma autobiografia dele? Ou uma biografia minha?), escrevi um texto que posso enviar depois, sobre o meu nome. Pode me chamar de Caio. Pode me chamar de Alberto. Pode me chamar de Tibaji. Pode me chamar de Junior.
Então, a vivência dessa ausência é possível, mas gosto de ter nome, gosto de me dirigir a alguém que tenha nome, ainda que tudo seja pleno de imaginação, ainda que o remetente no fundo seja outro, ainda que o destinatário mais apropriado para as palavras enunciadas não tenha sido nomeado ou não tenha nem mesmo nascido.
Beijos em vocês,
Alberto

sexta-feira, 16 de abril de 2010

O plantio da palavra

Querida Maria Claudia.

Quanto mais escrevo, mais me fascino pelo próprio processo da escrita. De onde vêm essas ideias? Parece, às vezes, uma loucura que me acomete. A pulsação do sentido. Lateja. Lateja. Lateja. A pulsação do sentido. O que o registro escrito diz do processo da escrita? O sentido pulsa em mim. O ofício do escritor é escrever. Por isso escrevo o máximo que posso: bilhetes, mensagens, cartas, poemas, contos, ideias, artigos científicos, observações à margem dos trabalhos dos meus alunos, comentários à margem dos livros, listas de compras, recados, notas, riscos. Algum pesquisador um dia investigará há quanto tempo escrevo “Call me Ishmael”.

Cultivo as palavras e as expressões. Corre seiva nas palavras. Nas veias do sentido, corre o quê? Cultivo supressões, repetições, podas. E no lugar de um galho cortado da laranjeira pende um ramo farto de ora pro nobis. Planto hoje aqui e a palavra não sossega, insiste em buscar outro jardim. Planto, então, na horta e os cães urinam sobre ela, escavam-lhe as raízes. Desassossego. Planto a palavra no pomar e ela teima em querer outro lugar. Um dia planto-a em companhia apropriada e ela se enraíza nesse convívio. Mas atenção: a cada vez que planto a palavra, ela se fortalece, mesmo se o convívio não é o apropriado. E quando ela se enraíza, deixa rescender os perfumes que acolheu em cada plantio.

Beijo,

Alberto

Carta antecipada



Querida Anita.

Call me Ishmael. É assim que começa.Você dá um nome. Como um demiurgo no domingo, você cria todas as coisas e, por princípio, principia por criar o criador. Foi assim que começou. Você deu um nome. A quem pertence este nome? A quem chama? A quem é chamado? Pode me chamar de Caio. É assim que começa. Você dá um nome. Você se dá um nome. Caio, Caio Marques. Marque esse nome. Quem escolheu esse nome? Marque, remarque. Começo a responder antes mesmo que você me envie sua carta.

Agora você vem me falar de separação? Como assim? Então antes havia vida em comum! Surpreendo-me com tal descoberta. Delicio-me. Agora que estamos afastados... E há correspondência... Você vem me falar – ou vem me pedir? – separação? Seria possível lembrar de como tudo começou? Não sou bom de memória. Não quero ser. Será que escrevo porque não sou bom de memória? Não escrevo para guardar memória, mas justo porque não guardo memória, dissemino.

O que eu deveria dizer agora? Que não posso aceitar? Que quando um não quer dois não brigam? Que nunca houve vida em comum e que você imaginou tudo? A vida em comum foi fruto da sua imaginação? Ou devo te dizer que, para o bem ou para o mal, havia e sempre haverá vida em comum? Começo a responder antes mesmo que você envie sua carta. Acho que tenho uma espécie de incontinência imaginária. Na verdade, você não vai me escrever sobre isso. De onde tirei isso tudo? A imaginação farta. Fardo da imaginação. Fado? Falta? Medo que você me diga que não quer mais saber disso, que a partir de agora, tudo vai ser diferente, cada um no seu canto.

Desculpe a brincadeira.

Talvez eu tenha estragado tudo. Não seria de se estranhar.

Como os nomes, a quem pertencem estas palavras?

Do seu,

Caio

Carta antecipada



Querida Maria Claudia.

Call me Ishmael. É assim que começa.Você dá um nome. Como um demiurgo no domingo, você cria todas as coisas e, por princípio, principia por criar o criador. Foi assim que começou. Você deu um nome. A quem pertence este nome? A quem chama? A quem é chamado? Pode me chamar de Caio. É assim que começa. Você dá um nome. Você se dá um nome. Caio, Caio Marques. Marque esse nome. Quem escolheu esse nome? Marque, remarque. Começo a responder antes mesmo que você me envie sua carta.

Agora você vem me falar de separação? Como assim? Então antes havia vida em comum! Surpreendo-me com tal descoberta. Delicio-me. Agora que estamos afastados... E há correspondência... Você vem me falar – ou vem me pedir? – separação? Seria possível lembrar de como tudo começou? Não sou bom de memória. Não quero ser. Será que escrevo porque não sou bom de memória? Não escrevo para guardar memória, mas justo porque não guardo memória, dissemino.

O que eu deveria dizer agora? Que não posso aceitar? Que quando um não quer dois não brigam? Que nunca houve vida em comum e que você imaginou tudo? A vida em comum foi fruto da sua imaginação? Ou devo te dizer que, para o bem ou para o mal, havia e sempre haverá vida em comum? Começo a responder antes mesmo que você envie sua carta. Acho que tenho uma espécie de incontinência imaginária. Na verdade, você não vai me escrever sobre isso. De onde tirei isso tudo? A imaginação farta. Fardo da imaginação. Fado? Falta? Medo que você me diga que não quer mais saber disso, que a partir de agora, tudo vai ser diferente, cada um no seu canto.

Desculpe a brincadeira.

Talvez eu tenha estragado tudo. Não seria de se estranhar.

Como os nomes, a quem pertencem estas palavras?

Do seu,

Alberto

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Resposta à Carta de Anita XI

Querida Anita.

Li sua carta. Pensei em quando saí desta cidade. Você diria que eu te deixei? Que te abandonei? Não pedi que você me esperasse. Não sabia se queria que você me esperasse. Voltei. Que Caio voltou? De repente a descoberta que você partiu. Não me esperou. Então eu queria que você me esperasse? Foi esse o Caio que havia partido? Me senti abandonado? Não consigo identificar nada de significativo na viagem ao Norte que justifique essa inesperada desilusão. O que aconteceria se você estivesse aqui? Eu correria para o abraço?

Sou o desencontro de mim mesmo. E sou tão desencontrado que mesmo o me saber desencontrado não desbrava o caminho para o despertar de quem eu seria.

Dizem que há lugares em que se vê o encontro do céu com o mar, em que se vê o encontro de céu e terra e que chamam de horizonte. Nunca vi essa linha, ainda que imaginária. Olho para os lados e vejo montanhas, casas, árvores, mas jamais esse encontro. Nem mesmo consigo imaginá-lo.

Anita, não sei se é demais, mas peço que imagine o que é um homem sem horizontes. Esse homem sou eu. Não, não caminho a esmo. Isso não. Só não sigo mais tentando alcançar esse encontro imaginário. Será que perdi o rumo nessa minha viagem ao Norte? Não ria. Não é leviandade da minha parte. Não perdi o prumo.

Antes da minha partida, sentia que você de certa forma esperava que eu compreendesse o constrangimento que eu te causava ao falar de Maria Emília. Mas eu justificava minha atitude, dizendo para mim mesmo que, se você me amava, precisava me ouvir falar de Maria Emília.

Desculpas. Peço-as agora. Peço desculpas. Sei que por carta é mais fácil porque estamos distantes e eu não verei seu olhar e sua reação, seja ela qual for, a esse pedido. Mas por carta fica escrito, e as janelas da escrita não se abrem para os mesmos lugares que as janelas da voz.

Anita – esta é a terceira vez que te interpelo nesta carta –, como disse numa carta ao Élvio, frequentemente escrevo cartas sem saber para quem são, sem saber para que escrevo. Esta carta é para você, esteja você onde estiver e ela é para te pedir desculpas – não por ter sido incompetente para te amar –, é para te pedir desculpas pela tolice de tantas de minhas certezas.

Um abraço muito afetuoso.
Do SEU
Caio.

quinta-feira, 18 de março de 2010

Resposta à Carta de Anita X

Querida Anita.

De volta ao início. Cartas antigas amontoadas, jogadas por debaixo da porta. Contas a acertar. Com quem? Talvez eu esteja sempre errado.

Ontem você rumou para seu novo destino. Ou terá sido hoje? Não posso dizer que você me deixou.

Muitas saudades. E descubro que podemos sentir falta daquilo que nunca tivemos...

Talvez a distância me permita certa intimidade que a proximidade dificulta. Talvez eu não tivesse a coragem de dizer pessoalmente o que te digo em cartas.

Não lamento nem festejo a impossibilidade de nosso amor. Constato.

Impossibilidade? Inexistência? Será que nos amamos e não sabemos? Será que não sabemos nos amar? Será que não nos amamos, mas imaginamos um amor impossível entre nós para amarmos esse amor e assim nos contentarmos com nossa incompetência para amar?

Não sei se devo pedir desculpas. Não sei se errei. Releio suas cartas. Se um desconhecido um dia lesse sua primeira carta para mim e lesse esta última não conseguiria imaginar que você se dirige a uma única e mesma pessoa.

Será que vivemos - nós dois - sempre no mundo da imaginação? Suas palavras me alimentam. Será que confundimos o que sentíamos? Será que erramos – ou errei – ao me aproximar corporalmente de você?

Que venham suas letras, que venham suas imagens. Se fui a brisa desses seus dias quentes, você foi o alento desses meus dias tépidos.

Abraço – se me permite – muito afetuoso

do SEU

Caio

Carta ao Élvio

Você correu para o abraço.
Foi você.
Talvez sim.

Querido Élvio.

Te escrevo esta carta, mesmo sem saber se você algum dia vai ler. Acho que acredito que ao traçá-la produzo um acontecimento que muda alguma coisa na vida. Ou talvez seja apenas a esperança de que, se não você, alguém algum dia lerá o que escrevo e poderá fruir estas palavras. Mas acho que não. Ter escrito será suficiente para mim. Disse que não sei se você lerá “estas mal traçadas linhas” porque posso não terminar esta missiva. Posso também terminá-la e não entregá-la. Por falta de ocasião, vergonha, medo ou por outro sentimento qualquer que me impeça de viver o momento de verdadeira exposição e todas as suas consequências. Mas quem sabe eu conseguirei chegar ao fim desta carta e “heroicamente” entregá-la. Você, por vergonha, medo ou qualquer outro sentimento que te impeça de receber um verdadeiro momento de expressão de afeto, ou apenas porque eu te entregarei esta carta em ocasião pouco apropriada, vai pegar o envelope, olhar nos meus olhos e dizer obrigado, vou ler mais tarde, com calma. Aí você vai abrir sua pasta, pegar o livro do David Byrne, guardar a carta e esquecê-la. Já posso ver no futuro, alguém da sua família, abrindo aquele livro do avô ou do tio avô, de uma época em que fazia sentido lutar por um mundo com menos carros e mais bicicletas e descobrir esta carta nunca lida. Quem pode, quem poderá dizer para quem esta carta está sendo escrita?

Mas o que eu quero é te falar da dificuldade de compreender o abraço. Há uns dez dias atrás, numa despedida, nos abraçamos com uma tal proximidade que desentendi o que é um abraço.

Os abraços, como as cartas, podem ser afetuosos, cheios de desejos, de solidariedade, formais, desajeitados, temerosos. Nosso abraço começou no afeto, passou pelo desejo, esbarrou no medo, desajeitou-se e finalmente firmou-se no acolhimento de si e do outro. Aprendi ali e naquele momento que um abraço pode ser abertura, encontro. Encontrei o Caio Marques que só existe com você. Encontrei o Élvio que só existe com o Caio Marques. E nos embalamos.

Lembrei-me do abraço daqueles dois. Lembra? De uma virilidade assustadora, cheia de raiva pela impossibilidade de viver aquele amor. De um contato violento, que causava medo diante da profundidade com que tinham se tocado. De uma beleza extrema, que sacia nossa ânsia de sintonia. Você dizia que era amor. Olívia dizia que era amizade. Eu dizia que era amor e amizade e que cada um a cada vez sentia seja amor seja amizade e que eles nunca se encontravam.

Quero que você me abrace mais vezes. Quero te abraçar mais vezes. Sentir a palma das tuas mãos nas minhas costas. Tocar as tuas costas com a palma das minhas mãos. Deixar que você me faça sentir uma parte de mim que não vejo. Te fazer sentir uma parte de você que você não vê. Porque em alguns trechos não somos visíveis, apenas táteis.

Um beijo.
Caio Marques
Querida Olívia.

Confesso. Você me preocupou hoje. Não resisti e, ao invés de preparar os documentos para a reunião de amanhã (você sabe que com freqüência deixo para fazer parte do trabalho em casa à noite), decidi te escrever. Você já sabe como as palavras valem preciosidades para mim.

Quero te me falar amizade amor e sensualidade. Sei que não tenho uma vida assim tão cheia de aventuras, nem uma vida longa o suficiente para dar conselhos. Uma vez, e te asseguro não foi a única, marquei um encontro cuja intenção era ter uma boa noite de sexo. Ao chegar na casa do rapaz, deparei-me com uma enorme quantidade de discos e livros. Minha paixão pelos livros me levou de imediato para as prateleiras. Ele era meio hippie e colocava seus livros dispostos em tábuas, sustentadas e separadas em cada ponta por tijolos. Próximo às estantes de tábuas, muitas almofadas pelo chão. Sentei ali e enquanto aguardava que ele me trouxesse uma cerveja, reparei na grande quantidade de livros de e sobre Walt Whitman. Quando ele voltou, com seu sorriso leve e envergonhado e perguntou se eu tinha dito água ou cerveja, perguntei-lhe se ele gostava de Whitman. Ele não me trouxe a água. Ele não me trouxe o álcool. Sentou ao meu lado, pegou o violão e depois de saber que gosto das poesias de Whitman, quis me mostrar a música que ele tinha feito para um trecho de poema. Falou da sua pesquisa e de como ele lia esses poemas. Falou de música. Fumou. Tirou a roupa. Não toda. Falou que gostava de escrever, que gostava de enigmas. Falou do vigor poético, do poder de transformação da poesia. Falou da relação entre música e poesia. Falou. Falou. Ouvi. Falei. Ele me ouviu. Lembrou da água ou da cerveja. Não deixei que ele levantasse do colchão. Me abraçou e me disse que não tinha problema se eu não quisesse transar. Me marcou o alívio que senti. Não transamos. Dormimos abraçados. Tivemos muitas outras noites de conversa.

Noutra época, não sei mais dizer se antes ou se depois do que acabo de contar, tinha uma colega de trabalho muito próxima. Éramos grandes amigos. Andávamos de mãos dadas, andávamos abraçados. Ela também já amara homens e mulheres. Numa tarde, na praia, na hora de nos despedirmos, nos beijamos. Depois disso, descobrimos que nos amávamos. Quando deitávamos juntos, deslizava meus dedos sobre seu corpo, podia ler sua pele. Eram tempos longos, de contagem duvidosa. Sua respiração, seus seios fartos, um osso mais saliente, uma curva sobressaltada, o cheiro do seu suor, seu peso. Tanto me excitava. Juntos sob o sol escaldante. Juntos na água. Juntos ao relento. Juntos sob o azul do céu, sobre a grama. Só nós.

Te conto isso porque gosto de contar estórias. Fatos, lembranças, fantasias, invencionices: quero te dizer que o importante é estar atento ao caminhar da estória. Às vezes, a atração pelo olhar resulta no carinho e às vezes a proximidade do carinho resulta na atração. Às vezes a gente marca um encontro cuja intenção é ter uma boa noite de sexo. E tem. Às vezes a gente marca um jantar cuja intenção é ter um bom papo. E tem! Às vezes a gente marca um encontro cuja intenção é ter uma boa noite de sexo. Tem a noite. Tem o sexo. E não é bom. Às vezes a gente marca um jantar cuja intenção é ter um bom papo. Tem a noite. Tem o jantar. E é ruim. Às vezes. Ou as vezes. Revés. Como saber se a gente sente tesão ou carinho? Estando próximo, estando atento. Sim, entendo o que você diz. Mas eu gosto dessa imprecisão. Bom é estar perto das pessoas de quem a gente gosta e deixar que o inesperado brote dessa proximidade. Escrito assim parece simples. E é. Difícil é a gente deixar de querer complicar. Isso é extremamente arriscado. Tanto o rapaz quanto a moça poderiam ter se zangado comigo...

Um abraço muito forte para você,

Caio Marques

Carta ao Pedro

Querido amigo,

O tempo transcorreu e agora que me dei conta de que aqueles sentimentos dentro da sua bagagem dele germinaram em mim. Ocorreu que não fui suficientemente ágil. Não percebi se o baú tinha ficado ali propositadamente ou se tinha casualmente escorregado. Qualquer um perceberia a queda de um baú. Mas e se ele tiver caído sem querer e você tiver apenas desistido de levá-lo? Será que você percebera que eu estava ali e propositadamente o deixou para mim? Não terei respostas definitivas para essas perguntas. Não parei para pensar se elas são necessárias. Dentro do baú encontrei futuros improváveis, presentes reprováveis, segredos irreconhecíveis, um ou mais sonhos acalentados – ou será roubados? – por um futuro para sempre perdido. Beijos que por amor não foram trocados. Saudades. Carícias caminhando a esmo porque destinadas não encontraram seu corpo de destino. Fechei de imediato. Não queria isso para mim. Anteontem quando nos despedimos, percebi que você carregava outro baú. Voltei, como sempre, a pé para casa e me perguntava, o quanto podia, se o baú que você me deixou – propositadamente ou não – era apenas o rebutalho. O verdadeiro baú, aquele cheio de sentimentos nobres, ou de sentimentos positivos, construtivos talvez, o verdadeiro baú era aquele outro. O que você não me entregara. Adormeci triste. Quando acordei, senti uma protuberância inaudita nas minhas costas. Preocupei-me. Na hora do almoço, sob as árvores, abraçados pelo calor, embalados pela amizade, percebi que você sorrateiramente entregara outro baú. Estávamos em quatro. Fiquei desconcertado. Não compreendi o sentido do seu gesto. De noite, quando cheguei em casa, cansado das incansáveis disputas pelo poder no cotidiano, percebi que a protuberância havia se transformado numa planta. Cheia de folhas. Curiosamente não vi estranheza nisso. Adormeci alheio. Pela manhã, já sem esse corpo estranho dentro de mim, arrisquei te compreender. Você se dedica a encher baús. Propositadamente. Escolhe o destinatário e insere dentro dele os disparates mais apropriados para o sujeito. E entrega. Com isso, descobri que sua sinceridade está na força com que você envia seus sentimentos e não na adequação entre o que você sente e o que você expressa. Pouco importa se esse amor, dentro do baú, existe ou não. Ele germinou em mim. Assim como certamente germinou nos outros dois que estavam sob as árvores. E esse afeto, que não precisa ser sempre e só amor, cresceu rápido. E gerou uma sombra, sob a qual, num dia de muito calor vou te entregar a minha bagagem dele. Oxalá você abra e daí prepare mais baús cheios de sentidos sem serventia alguma.
Abraço,
Alberto

Poema do Amigo Pedro Domingues

Há algum tempo atrás, li esse belo poema de um amigo. Pedro me autorizou publicá-lo aqui.

Emocionei ouvindo
e ouvi perguntar se afastamos.
Não sei quando se começou,
mas sei que tento, e já há algum tempo,
não sentir o sentir por você.

É fato isolado mas que prende a uma dor
- não a do sentimento - a do devaneio.

É referência de coisas de muito valor:
alegria, força de vida, carinho solidário, pique e cumplicidade.
Um pouco de liberdade e tanto de vadiagem.
Uma indagação ansiosa sobre o que há de se aprender e uma velocidade para construir
pontes de amizade.
Uma irresponsabilidade junto a uma seriedade do olhar a vida.
Tudo muito bem empacotado.

Não me existia até lhe conhecer
e aí, eu passei a existir menos.
Mesmo sem que perdesse nada do que tinha quando inteiro.
Não dói, eu sim. Não por sua causa,
mas pelo que não há em mim.

Pior é nunca ter tido qualquer ilusão e,
o que para mim sempre foi fácil -
superar sentimentos, correspondidos ou não;
entregar-me a qualquer prazer, disponível ou não;
passar pelas pessoas sem deixar pedaços meus na estrada;
entrar e sair leve dos tempos e espaços - passou
e passou, no que vejo de mim para você, a ser tédio ou martírio -
e isso sem os dramas que normalmente agrego para valorizar minha razão -
E nem é você e não sou eu, mas o que imaginei - cópias melhoradas de mim para você
- motivaram-me bastante a buscá-las.

Um dia você comentou sobre gostar de mais de uma pessoa
e eu, que não enxergo nos entes propriedades,
tentei ser uma pessoa,ao menos dentro de mim,
mas não consegui.
Continuo deslocado do que entendo por gente,
preso no tempo, no desejo, no medo, no palácio, no munturo, na negação
- e nada disso tem relação com você.

Tenho num baú um monte de sentimentos que são seus.
Não serão resgatados,
não serão despejados,
não serão sentidos.
Um dia, quando o maleiro confundir minha bagagem sua com a de outra pessoa, eles
não terão serventia.
Se desfizerem a confusão, ainda assim, não servirão.
Ficarão lá, sem uso, porque sempre os soube alienados, sem chão onde germinar,
sem eu no rebote.

Ah, não estranhe o exagero, é próprio dos monólogos.
Da parte amiga e do baú, será impossível extirpar a saudade.
Das dores, serão postas em oratório e não causarão mais danos.
Serão adornos.
Confeites de um bolo cenográfico, não afeito ao paladar.

Nada disso me tira a alegria de encontrar você nem a presença possível de nós dois.
Subtrai somente o desejo imperativo de concretizá-la.
Esta, em termos de afeto, empatou com sua ausência
e não compartilho meu constrangimento.
Aliás só o consigo expor assim.
Numa poesia truncada que não precisou de você pra ser escrita.

Escrito por Pedro Domingues

segunda-feira, 1 de março de 2010

Carta para Anita: visita surpresa



Anita querida,

preciso de você!

Imagino você batendo na minha porta de surpresa. Abro e o desejo de te abraçar é tão grande quanto o desejo de prolongar a surpresa de sua chegada, prolongar a sensação antes do abraço. Você entra e se dirige ao meu pomar, onde está minha cachorra. Deleito-me com a visão do seu rosto e com sua reação às lambidas dela na sua mão. Me encanto com esse carinho. Finalmente, você vem na minha direção e me abraça. Um abraço já destituído da surpresa inicial e do prazer de tê-la onde moro. Um abraço quase formal. E talvez eu me entristecesse. Mais provável que não. Você não para de olhar ao seu redor. Não sei se encantada. Com certeza curiosa. Como se dissesse que, apesar de todas as descrições que fiz da minha casa, você estava surpresa, não imaginara desse jeito. E desanda a me fazer perguntas sobre a casa, sobre os objetos, sobre as plantas, sobre a cachorra. Eu me sentiria, em algum recanto do meu ser, deixado de lado, à margem do seu devaneio. Para garantir sua presença, te ofereço uma água, te ofereço um vinho e pergunto o que te levou a vir à minha casa. Você suspira, senta numa poltrona da minha sala. Será que você suspira com frequência? O início da sua resposta é interrompido pelo gosto agradável do vinho. E você diria, brincando, que o vinho faz a ocasião. Eu rio. Sei, de certa forma, o que você quer dizer com isso. Rio das outras possibilidades que a frase desperta em mim. Rio da sua agilidade. Rio porque você me responde e não me responde. Você termina de beber o cálice de vinho, levanta-se. Imagino que você vai até a estante de livros. Você nem mesmo olha na direção dos livros. Olha para as conchas, algumas esculturas de barro que meus filhos fizeram quando eram pequenos. Pega uma pequena escultura com forma de cabeça humana e observa uma parte quebrada.

Eis-me imaginando como você seria...

Talvez não seja isso que se espera de uma carta. Talvez eu devesse falar de mim, expressar-me. Será que não fiz isso?

A solidão é o sentimento mais forte em mim. Tanto grito em mim que quero encontrar alguém quanto transpiro visivelmente a força da solidão. Perdoe-me por falar de modo assim tão estúpido, mas é como se, em alguns momentos, eu transpirasse a solidão da morte. Da morte? Por que da morte? Da vida, isso sim! Nem sei bem porque falei sobre isso. Acho que porque nos últimos tempos o lugar que mais conheço são os quartos de hotel. Nos falamos de novo? Espero que em breve.

Abraço,

Caio Marques

Carta para Maria Claudia Canto fev 2010



Brasília/Natal (voo), 05 de fevereiro de 2010.

Querida Maria Claudia.

Quem deve ser ou quem pode ser o meu personagem? Quem deve ou pode ser o interlocutor da Anita? Ainda não sei, mas sei que como sugestão sua de registro do processo criativo, pretendo te escrever cartas! Pensamos hoje, mais cedo, no almoço na sua casa, que talvez o meu personagem pudesse ser um personagem criado pela própria Anita. Há pouco imaginei algo inusitado: e se eles não escrevessem especificamente um para o outro? E se as cartas parecessem se “corresponder”, mas não houvesse “correspondência”? Como resolver isso? Uma vez escrevi um diálogo para uma peça que brincava com isso. Uma personagem, Eurídice, repetia umas quatro vezes uma sequência de frases enquanto seu interlocutor, Orfeu, fazia perguntas que “combinavam” com as respostas, mas percebia-se que não havia diálogo, pois as respostas de Eurídice eram mecânicas. Era mais ou menos assim:
- Pronto?
- Quase.
- Mas há horas você está aí e nada!
- Só mais um pouquinho...
- Como só mais um pouquinho?
- Exatamente.
- O que você quer dizer com isso?
- Exatamente o que eu disse.
- Nós vamos chegar atrasados!
- Quase.
- Você vai ou não vai abrir a porta?
- Só mais um pouquinho...
- Desse jeito eu vou acabar perdendo a cabeça!
- Exatamente.
- Repete!
- Exatamente o que eu disse.

Enfim, não lembro bem das palavras, mas a situação era mais ou menos essa. Digamos momentaneamente que vou escrever as cartas de Artur. Anita dirige-se a alguém que não é esse Artur, mas o leitor não sabe a verdade. Na verdade, Artur ( o meu) achou as cartas de Anita num baú e resolveu respondê-las. Mas não sabemos se o destinatário a quem Anita enviou as cartas é o Artur. Os dois vivem necessariamente em épocas diferentes. O Artur, para quem Anita escreve, não precisa nem mesmo existir. Pode ser uma ficção da Anita. Ou pode ser alguém para quem Anita não tinha coragem de entregar as cartas. O Artur que responde pode ser alguém que descende de Anita ou pode ser alguém que descende do verdadeiro Artur para quem Anita escreveu as cartas. Ou nenhum dos dois. Bom, preciso com urgência criar um blog, ainda que ele comporte inicialmente apenas as cartas desse processo de criação. Estou feliz que estamos juntos nesse movimento.
Beijo,
Alberto