quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Visita a Evandro

Querida Anita.

Saudades. Hoje estou pela primeira vez na nova casa de Evandro.
Chegamos. Ele não entra. Precisa, como de rotina, parece, cumprimentar seu cachorro. Um cão velho e alegre que com seus olhos admiráveis e sua cauda inquieta declara seu amor por Evandro com uma frequência espantosa. Acho que alguém veio conversar com ele no portão. Vou entrando na casa com certa timidez. Sem aquele que deveria apresentá-la.
Uma casa é um corpo. Nem toda casa. A de Evandro é. Com órgãos, mas apenas ao primeiro contato. Depois, o aparelho digestivo, a estrutura mental, o aparelho respiratório, tudo some para dar lugar à força do que é o contato. Talvez porque Evandro tenha vivido infeliz durante seis meses numa casa aqui tão ao sul de onde você, Anita, vive, que agora precisava viver os sentidos da morada do jeito mais pleno que fosse possível. Sinto-me na intimidade de alguém. Sentar no sofá, abrir uma gaveta, olhar uma foto na parede é tocar nele, no que há de íntimo, como se eu estivesse indevidamente lendo seu diário.
O calor emana de toda parte.
O pijama está devidamente dobrado e guardado dentro da gaveta esquerda da porta do meio do guarda-roupas. Suas camisas, enfileiradas, voltadas todas, sem exceção, para o mesmo lado (e nisso nós diferimos porque as minhas, além de tudo, estão separadas por cores). Os muitos enfeites, dispostos sobre o aparador de modo regular e quase hierárquico. Estranhamente sua casa não é rígida. Evandro não é daqueles que mantêm tudo milimetricamente no lugar e que se irrita com alguém que retira os objetos da ordem arbitrária que ele lhes dá.
É uma casa sensata.
Aconchegante também.
E eu, que me sinto culpado com uma rapidez estrondosa, quando dou por mim, contaminei o sofá, a torneira, a maçaneta, a toalha de rosto – aquela com os dois nomes –, um porta-retratos e tanto mais; contaminei esse reino de sensatez com minha insensatez, com minha imaginação incontrolável, com um turbilhão de sonhos e de desejos incontornáveis, nos dois sentidos que a palavra contorno pode ter.
Ainda há caixas – poucas – a serem abertas.
O aquário, em lugar discreto na sala, teima. Saberei em breve que os peixes têm se recusado a nadar na vitrine.
Ainda não vi a bandeja de prata da qual ele nunca me falou, mas que tenho certeza existir em algum lugar da sua intimidade.
Entrou. Fechei o diário diante do olhar perplexo de Evandro. Sinto-me acusado de ser um homem doente, flagrado em plena compulsão pela palavra ou será mais interessante dizer flagrado pela palavra em plena compulsão?
Afeição forte por você,
Caio.

domingo, 21 de agosto de 2011

Querida Anita


“O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim

Anita, sua carta – novamente – me desarrumou. Você me lembrou Maria Emília. E me vem: quem é você? E retorna maritimamente: quem sou? Quem sou eu para causar tantos transtornos? E você, quem é você que ao meu lado murcha e ao longe desabrocha?
E te agradeço porque me chamas Caio, mesmo sabendo que este incerto nome não é tudo o que sou. Afianço que na minha lápide qualquer nome será um equívoco. A ausência de um também.
Serei rude. Você veio me ver, compartilhamos o leito, a comida, a paisagem. E o que eu via era a Anita de sempre: maravilhada a cada sabor, cada carinho, cada cor. Mas essa não era você. Será isso?
Serei rude. Eu te faço mal? Mas se ambos confessamos nossas traições... Se ambos tiramos as máscaras e não vimos nossos rostos?...
Eu não te faço mal. Você ama alguém que não existe, daí quando você está próxima, aquele que existe te desagrada.
Nossa vida precisa restringir-se a essa eterna troca de cartas.
É assim que te amo.
Caio

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Resposta ao reencontro

Querido Pedro.
Devo confessar que me assustei com sua vinda. Também me irritei. Num período tão curto, pessoas tão díspares me visitaram: você, Anita e Cecília. Seria pedir demais que eu permanecesse ileso.
E você chegou a pensar que eu teria te esquecido...
Falando nisso, faço minhas as suas palavras. Ou quase. Sim, me casei. Você sabe. Tenho dois filhos maravilhosos. Você também sabe... E me casei de um jeito convencional, devo dizer. Me casei com uma mulher, Maria Emília. Ah, você já sabe... Quem diria, meu amigo, eu, que também achava que você seria o único homem da minha vida, me casando com, nada mais nada menos, uma mulher. Aprendi que na vida, nossa orientação é nosso desejo, qualquer que seja o sexo.
Devo confessar que não consegui dormir depois de nossa ida à festa.
Também devo confessar que me assustei com sua reação. Nossa distância geográfica, mensurável em quilômetros, me impede de conversar com você pessoalmente. Mas não quero deixar isso para depois.
Explico agora com calma. Refiro-me ao seu espanto com relação à minha declaração de amor. Mas é fundamental que você entenda que amo os detalhes. Não são as coisas grandiosas que me enchem os olhos, mas as minúcias.
Olha para você ver. Cheguei na festa com a preocupação de resgatar o meu saca-rolhas (isso ainda tem hífen?). Você muito rapidamente encontrou-o e colocou-o no bolso da sua blusa de frio. E ele lá ficou, até a hora de sairmos. Um saca-rolhas. Percebe? Para além da demonstração de cuidado. Você guardou com você, perto do seu corpo, aquilo que permite a saída daquilo que retenho, aquilo que permite o fluxo. Fluxo de bebida similar ao sangue, líquido de sabor forte, embebido – se é que isso é possível – da herança paterna, você sabe. E você, sabe-se lá por que razões, depois de desobstruir meus afetos, repito, guardou junto de seu corpo, aquilo que me permitiria desimpedir novos afetos. E mo devolveu. Ou melhor: guardou-o no porta-luvas (inferno de reforma ortográfica!) do meu carro, como que dizendo: cabe a você, Caio, decidir agora o que fazer.
Mais uma coisa. Ainda na festa, quando eu disse que eu precisava parar de beber, você passou a vigiar minha sede. E pediu que eu parasse de beber. Não parei. Você carinhosamente aceitou que eu terminasse meu último copo. Depois disso, se me ofereciam algo, você recusava por mim.
Uma última coisa. O aconchego que você me fez sentir num momento de dor extrema, ainda na festa. Revelei para você uma dor profunda que guardo e que jamais dividi com ninguém da minha família e com nenhum amigo, por mais íntimo que seja. Aliás, peço, se não for de grande monta, que jamais fale sobre isso com ninguém. Nem comigo mesmo. Não tenho condições de lidar com essa dor. O abismo é largo demais e eu não tenho habilidade para saltar para o outro lado.
O saca-rolhas, a bebida e o abraço. Isso reacendeu em mim o que senti outrora por você.
Mas você fugiu. Refugiou-se de mim. E queria, por exemplo, que eu dissesse que amava em você o seu corpo: os olhos, os braços, o sexo, os pés ou o rosto. Ou que amava sua coragem, sua franqueza, sua vitalidade. Queria que eu amasse não um gesto, mas a mão que o realizava, não um olhar, mas uma decisão.
Nada disso me seduziu.
Você me encanta pelo ínfimo.
Sabe que não acredito nos pedidos. Não pedirei que você volte. Não pedirei que me ame.
Imagino como você lê essas atitudes...
Mas digo: quis você. Te quero novamente. Quero você ao meu lado, ainda que separado por quilômetros.
Teu,
Caio.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Evandro,

um susto. Rápido quanto. Casual. E eu estava sentado à sua frente na mesa do bar. Ah, verdade, havia outro homem ao seu lado. Eu desinteressado. Claro, você não vai acreditar. Fiquei confuso com tudo o que aconteceu. Acho que sou meio burro em relação ao amor e ao sexo. Jocoso, me pediu em casamento. Nos conhecíamos há alguns meses, mas não tínhamos intimidade alguma. E insistiu. E jocoso. Constrangi-me. Ou foi você que me constrangeu? Sei não. E perdi-me. Até que em sua confissão, a brincadeira rimou verdadeira. E rápido minha perna estava entre suas pernas e me fez carinho e bebeu e me beijou.
E então? Na minha, então. Você não contou os degraus. Não lembrou dos compromissos da manhã seguinte. Não percebeu aonde deixou sua chave, não me esperou. Gozou do prazer de estar na minha casa. Tudo rápido. Apenas dois ou três lampejos de hesitação. Não precisou me convencer de irmos para sua casa.
Recolhemos as roupas. Nos agasalhamos. Você zeloso da ordem. Com medo da punição. Talvez certo da necessidade da ordem. Sem capacete, não fui atrás de você. Te segui. Na sua casa, então.
Na sala, nos quartos, na cozinha, tudo estava perto do fim. Pilhas de caixas, de sacos e de móveis. Etiquetas carregadas de estórias – o seu nome e o dele – diziam o destino de cada caixa, saco e móvel. Nossa noite foi bela, no meio da minha mudança e em meio à sua desordem. De manhã, depois do café, a preguiça e o carinho.
Hoje, passado tempo, em minha casa, me pergunto para quem ficou a toalha de rosto com o nome bordado de cada um de vocês. Hoje, passado tempo, em minha casa, me pergunto que medida tem cada uma das rimas da confissão. Hoje, passado tempo, em minha casa, pelos sentidos dessa noite que foi nossa, me pergunto.
Todo seu,
Caio