quinta-feira, 17 de junho de 2010

Ao Raul

Há em mim uma forte necessidade da letra. A vida ativa um espectro de palavras.
Adoro cartas. São para mim, neste momento, a possibilidade de falar para alguém que tem um nome, mas, ao mesmo tempo, para todo e qualquer um que venha a ler estas palavras.
Começo. Na despedida, já estou vestido, e você pega a manga esquerda da minha camisa. Abotoa atentamente meu punho. Busca a outra manga – haveria desejo seu de outro punho a ser abotoado?
Não há.
Leio isso: manifestação de carinho da sua parte, desejo de me ver arrumado, bonito. Detalhe de suma importância. Sim, foi isso que li. Você também aprecia os detalhes, são de suma importância. Vi, então, você, atento, lendo as linhas da mão de uma folha. Vi você extasiado com o sopro da brisa – e me reiterava, não é a brisa, é o sopro – àquela hora da manhã quando a janela do quarto e a porta da cozinha estavam abertas. Vi você absorto, tentando se aproximar da sensação do peso da caneta sobre o papel e do peso da sombra sobre a parede.
Assim foi nossa noite. Colorida pela balbúrdia do tato. E os nervos e músculos ativados do seu corpo rescendiam um aroma constante e rico. As palavras, o queixo, o peito, a axila, e também a ponta dos dedos, as costas, uma dobra, uma pinta, tudo corpo. O sexo também.
Certa vez certo poeta me disse que tratava as palavras para que fossem um lago de superfície cristalina. Assim, o leitor veria toda palavra em sua profundidade. Não lembro bem se foi um escritor, mas me disse cuido da


palavra bruta
sem qualidades
sem carregamentos
desprovida de autonomia

palavra bruta
seus resíduos
suas contaminações
arranhões e cicatrizes de todo tipo
rastos de seu atrito com a realidade
tudo são pertencimentos

sou a minha palavra bruta


e um dia serei quem digo ser
ainda que eu seja
hoje
este que digo ser
um dia
amanhã
minha palavra bruta correrá em minhas artérias
irrigará todo meu corpo
amanhã
quando acordar
uma preposição correrá entre os dedos das mãos e dos pés
artigos em meus ouvidos
nas pontas dos dedos vibrarão substantivos abstratos
e meu corpo terá sido palavra
e minha palavra terá sido corpo.

Abraço forte
do seu
Caio

2 comentários:

  1. Querido Caio,

    Saber-te tão fortemente ligado a Raul me faz perceber a intensidade a que teus sentimentos podem chegar e no fundo quase sinto uma ponta de inveja pelo que sentes por ele, do que não sentes por mim.

    Sua ausência torna-se mais e mais uma presença incômoda, que tal qual uma torneira pingando lembra-me a cada instante dos momentos que tivemos juntos, dos passeios, das conversas animadas, das confissões que fizemos e da distância que ora nos separa. Como um pingo d'água na testa da Cuca (a esse Lobato) imobiliza minha alma, faz doer a cabeça, o peito, os pés.

    Saudades imensas, sua

    Anita

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  2. lindo poema...

    http://felipedesouza-psicologo.blogspot.com/

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