quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Falsa intimidade



Falsa intimidade:
segredos inconfessáveis,
um guardado especial no fundo de uma das gavetas do armário,
aquilo a que só eu tenho acesso,
desejos recônditos,
prazeres proibidos,
tato oculto,
tanto oculto,
aquilo de que não se fala,
aquilo que não se fala,
talvez inominável,
instância protegida cuja chave entrego a poucos,
o mais profundo aonde me encontro.

Aonde sou mais eu?
Aonde me encontro?
Eu me encontro aonde sou mais eu?

Superlativo do dentro.

Ah, se o dentro estivesse por detrás da casca!
Ou debaixo da superfície!

Não!
Intimidade aflora.
Melhor: desabrocha,
irrompe
no silêncio do olhar do amado,
no acolhimento do abraço da amiga,
na confiança da palavra do pai,
na sabedoria do bem-querer da mãe.
Não, não há intimidade do um.
Só há intimidade a dois.
E poucos dispõem-se.

Alberto Tibaji

sábado, 17 de dezembro de 2011

Anita, muito querida.


Às vezes, quando te escrevo, tudo se embaralha. Explico. Tenho a sensação de que você é muitas e muitos. Numa única missiva como esta, te nomeio – Anita – e nesse nome vivem muitas. Parece ficção. E não é . Talvez esse seja o sentido da amizade.
Será que nosso amor era realmente impossível? Será que nossos deslocamentos não passaram de subterfúgios para encerrar – eu ia dizer enterrar – aquilo que não poderia ter nascido e tendo nascido não poderia prosseguir? Não sei. E te digo com profundo prazer e desconforto: assumo este não saber, pois isso me faz totalmente humano. Hoje estou filósofo.
Alberto me emprestou hoje um livro que Maria Cláudia enviou de presente para ele: 360º, de Amanda Costa. É um livro sobre os aspectos astrológicos da obra de Caio (meu xará) Fernando Abreu.
Nele há várias cartas que Caio escreveu para Amanda. À parte todo o conteúdo astrológico, do qual não entendo patavina, as cartas são belíssimas. Leia, se puder.
E fiquei pensando no que significa escrever cartas nos dias de hoje. Sinto que nelas exercito certa memória literária e afetiva. Lembro das cartas que meu pai escrevia para minha mãe quando íamos para o norte (eis aí um indício para compreender minhas atitudes e ações); lembro da minha mãe lendo as cartas que meu pai escrevia; lembro das cartas que eu escrevi para Papai Noel; lembro das cartas que minha avó materna nos enviava; lembro dos cartões de Natal que eu escrevia no nome da minha família; lembro das cartas que meu pai recebia de seu amigo/irmão. E havia regras para escrever cartas: que tipo de pergunta se devia fazer; o que não devia ser perguntado; como encerrar uma carta; como iniciá-la e sobretudo a necessidade de responder ao que o outro havia afirmado ou perguntado.
E cá estamos nós. Sei que sou eu quem escrevo esta carta, mas na medida em que ela é para você – Anita –, ainda que você seja muitas e muitos, você, Anita, está aqui.
Acho que Alberto já te mencionou sobre Virgílio. Queria te contar sobre o que tenho vivido e quão intenso tem sido. Queria te escrever sobre minha vida, meu trabalho, meus pais, meus filhos, minhas expectativas, desejos, sonhos, lembranças, medos, obsessões e aí canso. Só de pensar. E lembro que sou um mero usurpador, que roubei o nome de alguém. E me perdi. E tudo o que eu disser, vai me soar falso. Soo falso. Mesmo, assim persisto [a vírgula é aí mesmo].
[Alberto me diz que há na relação entre dois homens uma dor que não é física; a cada transa – essa é a palavra que ele diz preferir –, ainda que não haja penetração, cada um toca, na sua própria medida, numa lesão íntima. E acrescenta: “como tanto na vida, tudo o que digo sobre essa lesão é odor, fumaça e eco”. Ele escreveu isso na dedicatória de um livro do Caio F. que ele me deu.]
No dia 20.06.  88, Caio F. escreveu para Amanda:
“Não consigo parar de te escrever.
Vou fazer um esforço.
Fiz.
Pronto, parei. Beijos”
Caio M.

sábado, 1 de outubro de 2011

Para Virgílio


Meu amor por você é como o céu. Do tamanho mesmo. Olho. Ele está ali, diante de mim, impalpável e visível. Para alguns tal como pano de fundo, para mim impregnando um voo, uma folhagem, o percurso de uma bola, a passagem de uma nuvem. Esse é o sentido de estar bêbado de amor.

Olho seu rosto que soa paisagens. Agora sério, agora embevecido, daqui a instantes aguerrido, há pouco peralta. E sinto que te escrevi sem te conhecer e que te conhecer é embrenhar-me no desconhecido, lugar sem atalhos, de sentidos flutuantes: quando acho que és tu, sou eu, e quando tenho certeza de me ver, enganei-me mais uma vez.

Olho seu rosto. Miro seus dentes, luar que se descortina quando você sorri. Com eles você rasgou meu peito e abocanhou, ainda pulsando, meu coração. Que luz é essa que deles emana, violenta e cálida, arrebatadora?
Deixo-me em imagens e você me colhe. Às vezes piegas, às vezes sonhador, às vezes penetrante.

Seguimos emaranhados, desejantes.

Olho seu rosto. Já há rugas em seus olhos, fios brancos em seus cabelos. Navego, então, nas marcas do seu tempo e descubro que amar é travessia: esgueirar-me para as terras de quem amo e furtivamente trazê-lo para minha quinta e num momento flagrar-me deitado ao sol sobre uma pedra num ribeirão em meio ao seu sítio.

E assim derivamos entre sítios e quintas, entre sonhos e lembranças, presente dádiva.

São suas as minhas palavras. E nos pertencemos. Como o gesto pertence à mão, como o azul pertence ao céu.

Caio Marques

sábado, 10 de setembro de 2011

Para você


Ao seu lado. Talvez tenha sido casual. Há palavra mais imprescindível do que essa? Talvez, talvez. Como foi mesmo que eles me disseram? Ah, um deles estava ao volante, devia ser Caio. Ao seu lado, Virgílio. Parecia um retorno à Roma antiga: Caio e Virgílio. E Caio, sem saber, a bem da verdade, a quem dirigia suas palavras, e talvez (novamente o imprescindível) ainda não o saiba; e Caio, sem saber a quem dirigia suas palavras, sugeriu a Virgílio que se mantivesse naquela vibração. Aqueles dois... Não era justo que fosse do jeito que era, dizia Virgílio, ao seu lado. Quando você menos esperar, ele estará ao seu lado, dizia Caio. Sem saber que estava ao seu lado. Ou sabia. Daí a reviravolta. Suas palavras, as de Caio, falavam do que ele não sabia. Foi assim, quando Caio menos esperava. Foi assim, quando Caio mais desejava. Perdão pelo jogo banal: quando caiu em si. Quando para si brilhou o que mais desejava. Só aí apareceu ao seu lado, no banco de uma praça, quem, sem saber, Caio desejava. Também ao seu lado, uma fonte que, invocada por Virgílio, adquiriu vida e testemunhou o encontro dos dois rios. Ao largo passava a causa de tudo.
                Num momento sem mágica, em que o melhor e o mais fácil seria a fidelidade ao curso da estória, ainda que por pouco tempo, aqueles dois inventaram um novo sentido, prepararam o leito  e deram novo curso às águas que se formaram.
                Quando mostrei estas palavras que agora redijo a uma leitora incauta, disse-me ela que soavam por demais enigmáticas. Ora, ora, de que me adianta a clareza das palavras? De que me adianta que transpareça o sentido que ardentemente tento criar? Para quem escrevo? Talvez para mim mesmo. Ou para Virgílio. Ou para aquele jovem adolescente de dezesseis anos que mal começa a vida amorosa e sente-se fortalecido porque ao descer a rua vê aqueles dois abraçados num beijo de amor. Eis que minhas palavras fluem como aquele beijo. Os amantes entregaram-se um ao outro e seu encontro significava mais do que puderam ver.
                Dobro este papel. Reflito. Quem sabe hoje é um dia especial. Quem sabe? E aonde vão me levar essas palavras que brotam em mim incessantemente e que desdobram e recobrem a realidade? Levanto-me. Perambulo pela casa e tento recordar algo mais que me tenham dito. Bebo um gole de vinho. O vinho sabe a uma recordação. Não consigo alcançá-la. Suspeito que algumas de minhas lembranças tenham adquirido vida própria e estejam – talvez, talvez – ao lado do garoto de dezesseis anos, que não conheço, e que vagamente, mirando um horizonte incerto lembra do que vivi.

Alberto

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Visita a Evandro

Querida Anita.

Saudades. Hoje estou pela primeira vez na nova casa de Evandro.
Chegamos. Ele não entra. Precisa, como de rotina, parece, cumprimentar seu cachorro. Um cão velho e alegre que com seus olhos admiráveis e sua cauda inquieta declara seu amor por Evandro com uma frequência espantosa. Acho que alguém veio conversar com ele no portão. Vou entrando na casa com certa timidez. Sem aquele que deveria apresentá-la.
Uma casa é um corpo. Nem toda casa. A de Evandro é. Com órgãos, mas apenas ao primeiro contato. Depois, o aparelho digestivo, a estrutura mental, o aparelho respiratório, tudo some para dar lugar à força do que é o contato. Talvez porque Evandro tenha vivido infeliz durante seis meses numa casa aqui tão ao sul de onde você, Anita, vive, que agora precisava viver os sentidos da morada do jeito mais pleno que fosse possível. Sinto-me na intimidade de alguém. Sentar no sofá, abrir uma gaveta, olhar uma foto na parede é tocar nele, no que há de íntimo, como se eu estivesse indevidamente lendo seu diário.
O calor emana de toda parte.
O pijama está devidamente dobrado e guardado dentro da gaveta esquerda da porta do meio do guarda-roupas. Suas camisas, enfileiradas, voltadas todas, sem exceção, para o mesmo lado (e nisso nós diferimos porque as minhas, além de tudo, estão separadas por cores). Os muitos enfeites, dispostos sobre o aparador de modo regular e quase hierárquico. Estranhamente sua casa não é rígida. Evandro não é daqueles que mantêm tudo milimetricamente no lugar e que se irrita com alguém que retira os objetos da ordem arbitrária que ele lhes dá.
É uma casa sensata.
Aconchegante também.
E eu, que me sinto culpado com uma rapidez estrondosa, quando dou por mim, contaminei o sofá, a torneira, a maçaneta, a toalha de rosto – aquela com os dois nomes –, um porta-retratos e tanto mais; contaminei esse reino de sensatez com minha insensatez, com minha imaginação incontrolável, com um turbilhão de sonhos e de desejos incontornáveis, nos dois sentidos que a palavra contorno pode ter.
Ainda há caixas – poucas – a serem abertas.
O aquário, em lugar discreto na sala, teima. Saberei em breve que os peixes têm se recusado a nadar na vitrine.
Ainda não vi a bandeja de prata da qual ele nunca me falou, mas que tenho certeza existir em algum lugar da sua intimidade.
Entrou. Fechei o diário diante do olhar perplexo de Evandro. Sinto-me acusado de ser um homem doente, flagrado em plena compulsão pela palavra ou será mais interessante dizer flagrado pela palavra em plena compulsão?
Afeição forte por você,
Caio.

domingo, 21 de agosto de 2011

Querida Anita


“O quereres e o estares sempre a fim
Do que em mim é de mim tão desigual
Faz-me querer-te bem, querer-te mal
Bem a ti, mal ao quereres assim

Anita, sua carta – novamente – me desarrumou. Você me lembrou Maria Emília. E me vem: quem é você? E retorna maritimamente: quem sou? Quem sou eu para causar tantos transtornos? E você, quem é você que ao meu lado murcha e ao longe desabrocha?
E te agradeço porque me chamas Caio, mesmo sabendo que este incerto nome não é tudo o que sou. Afianço que na minha lápide qualquer nome será um equívoco. A ausência de um também.
Serei rude. Você veio me ver, compartilhamos o leito, a comida, a paisagem. E o que eu via era a Anita de sempre: maravilhada a cada sabor, cada carinho, cada cor. Mas essa não era você. Será isso?
Serei rude. Eu te faço mal? Mas se ambos confessamos nossas traições... Se ambos tiramos as máscaras e não vimos nossos rostos?...
Eu não te faço mal. Você ama alguém que não existe, daí quando você está próxima, aquele que existe te desagrada.
Nossa vida precisa restringir-se a essa eterna troca de cartas.
É assim que te amo.
Caio

quarta-feira, 10 de agosto de 2011

Resposta ao reencontro

Querido Pedro.
Devo confessar que me assustei com sua vinda. Também me irritei. Num período tão curto, pessoas tão díspares me visitaram: você, Anita e Cecília. Seria pedir demais que eu permanecesse ileso.
E você chegou a pensar que eu teria te esquecido...
Falando nisso, faço minhas as suas palavras. Ou quase. Sim, me casei. Você sabe. Tenho dois filhos maravilhosos. Você também sabe... E me casei de um jeito convencional, devo dizer. Me casei com uma mulher, Maria Emília. Ah, você já sabe... Quem diria, meu amigo, eu, que também achava que você seria o único homem da minha vida, me casando com, nada mais nada menos, uma mulher. Aprendi que na vida, nossa orientação é nosso desejo, qualquer que seja o sexo.
Devo confessar que não consegui dormir depois de nossa ida à festa.
Também devo confessar que me assustei com sua reação. Nossa distância geográfica, mensurável em quilômetros, me impede de conversar com você pessoalmente. Mas não quero deixar isso para depois.
Explico agora com calma. Refiro-me ao seu espanto com relação à minha declaração de amor. Mas é fundamental que você entenda que amo os detalhes. Não são as coisas grandiosas que me enchem os olhos, mas as minúcias.
Olha para você ver. Cheguei na festa com a preocupação de resgatar o meu saca-rolhas (isso ainda tem hífen?). Você muito rapidamente encontrou-o e colocou-o no bolso da sua blusa de frio. E ele lá ficou, até a hora de sairmos. Um saca-rolhas. Percebe? Para além da demonstração de cuidado. Você guardou com você, perto do seu corpo, aquilo que permite a saída daquilo que retenho, aquilo que permite o fluxo. Fluxo de bebida similar ao sangue, líquido de sabor forte, embebido – se é que isso é possível – da herança paterna, você sabe. E você, sabe-se lá por que razões, depois de desobstruir meus afetos, repito, guardou junto de seu corpo, aquilo que me permitiria desimpedir novos afetos. E mo devolveu. Ou melhor: guardou-o no porta-luvas (inferno de reforma ortográfica!) do meu carro, como que dizendo: cabe a você, Caio, decidir agora o que fazer.
Mais uma coisa. Ainda na festa, quando eu disse que eu precisava parar de beber, você passou a vigiar minha sede. E pediu que eu parasse de beber. Não parei. Você carinhosamente aceitou que eu terminasse meu último copo. Depois disso, se me ofereciam algo, você recusava por mim.
Uma última coisa. O aconchego que você me fez sentir num momento de dor extrema, ainda na festa. Revelei para você uma dor profunda que guardo e que jamais dividi com ninguém da minha família e com nenhum amigo, por mais íntimo que seja. Aliás, peço, se não for de grande monta, que jamais fale sobre isso com ninguém. Nem comigo mesmo. Não tenho condições de lidar com essa dor. O abismo é largo demais e eu não tenho habilidade para saltar para o outro lado.
O saca-rolhas, a bebida e o abraço. Isso reacendeu em mim o que senti outrora por você.
Mas você fugiu. Refugiou-se de mim. E queria, por exemplo, que eu dissesse que amava em você o seu corpo: os olhos, os braços, o sexo, os pés ou o rosto. Ou que amava sua coragem, sua franqueza, sua vitalidade. Queria que eu amasse não um gesto, mas a mão que o realizava, não um olhar, mas uma decisão.
Nada disso me seduziu.
Você me encanta pelo ínfimo.
Sabe que não acredito nos pedidos. Não pedirei que você volte. Não pedirei que me ame.
Imagino como você lê essas atitudes...
Mas digo: quis você. Te quero novamente. Quero você ao meu lado, ainda que separado por quilômetros.
Teu,
Caio.

quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Evandro,

um susto. Rápido quanto. Casual. E eu estava sentado à sua frente na mesa do bar. Ah, verdade, havia outro homem ao seu lado. Eu desinteressado. Claro, você não vai acreditar. Fiquei confuso com tudo o que aconteceu. Acho que sou meio burro em relação ao amor e ao sexo. Jocoso, me pediu em casamento. Nos conhecíamos há alguns meses, mas não tínhamos intimidade alguma. E insistiu. E jocoso. Constrangi-me. Ou foi você que me constrangeu? Sei não. E perdi-me. Até que em sua confissão, a brincadeira rimou verdadeira. E rápido minha perna estava entre suas pernas e me fez carinho e bebeu e me beijou.
E então? Na minha, então. Você não contou os degraus. Não lembrou dos compromissos da manhã seguinte. Não percebeu aonde deixou sua chave, não me esperou. Gozou do prazer de estar na minha casa. Tudo rápido. Apenas dois ou três lampejos de hesitação. Não precisou me convencer de irmos para sua casa.
Recolhemos as roupas. Nos agasalhamos. Você zeloso da ordem. Com medo da punição. Talvez certo da necessidade da ordem. Sem capacete, não fui atrás de você. Te segui. Na sua casa, então.
Na sala, nos quartos, na cozinha, tudo estava perto do fim. Pilhas de caixas, de sacos e de móveis. Etiquetas carregadas de estórias – o seu nome e o dele – diziam o destino de cada caixa, saco e móvel. Nossa noite foi bela, no meio da minha mudança e em meio à sua desordem. De manhã, depois do café, a preguiça e o carinho.
Hoje, passado tempo, em minha casa, me pergunto para quem ficou a toalha de rosto com o nome bordado de cada um de vocês. Hoje, passado tempo, em minha casa, me pergunto que medida tem cada uma das rimas da confissão. Hoje, passado tempo, em minha casa, pelos sentidos dessa noite que foi nossa, me pergunto.
Todo seu,
Caio

segunda-feira, 20 de junho de 2011

Zona da intimidade



Espartilho não localizado
Sobre a cama
Cuecas e meias não identificadas
Pelo quarto
Sob a cama
Incógnita
Armário presente
De portas escancaradas
A luz persistente do abajur
Desafia
A inundação do sol
No chão
A escova de dentes locupleta-se
Com o sabonete
Preservativos duvidosos
Marcam
O livro sobre Klee
Janela aberta
Uma das asas
Desaparecida
Cinto numa posição
Sapatos noutra
Mais além um nó
De gravata
Zona
De nexos
eu

Intimidade

Anita [?]
Veja o poema que publiquei.
AT

Fim de uma farsa

Querida Anita [Anita?],
Há quanto tempo longe da tua companhia... Fazes-me falta!
Perdão pela minha traição. Peço. Acabo de pedir. Creio que antes mesmo de pedir já fui perdoado pela sua resposta. Imagino que o fato de ter me respondido, já é, de algum modo, um certo perdão. Doce ilusão? Não creio.
Não me arrependo de ter tomado o lugar de Caio, de ter me apropriado do nome dele. Agora vejo que me sentia sozinho e que fui provavelmente tão Caio quanto o próprio Caio.
Ando assombrado. Escrevi muito nos últimos tempos, mas não conseguia me dirigir a você. Logo a você que me lê e me responde. Burrice. Talvez precisasse mesmo era terminar a farsa, o teatro, a encenação, o jogo ou como você quiser chamar esse período de nossa relação. E você, corajosamente, dolorosamente tira a máscara. [Tira?]
Você falou tanto de máscaras e de mentiras que preciso te enviar o que escrevi outro dia a respeito de algo que se passou há muitos e muitos dias.
Não me lembro bem porque me exaltei. Aliás, não era difícil eu me exaltar. O carinho dele era no sentido de eu não pôr a perder uma bela amizade. Na época, eu acreditava nesses encontros mágicos. Há tanto tempo éramos próximos e eu não percebera que ele estava interessado em mim. Se percebi, disfarcei tão bem que hoje em dia não me lembro. O que ele queria mesmo era poder colocar a mão na minha perna. Ver o que eu sentia. Naquela noite, ele sentiu na mão dele o que eu sentia. Ali, no restaurante, por baixo da toalha da mesa, enquanto conversávamos com nossos amigos. Eu também senti na minha mão o que ele sentia.
Voltamos a pé para casa.
Para ele, nosso amor era imperdoável.
Eu nunca soube o quanto ele mentia. Mentia tanto que eu já não sabia se o desejo de esconder o nosso amor também era falso. Nas minhas fantasias, imaginava ele rindo de mim porque eu acreditava que os outros não sabiam que ele era gay. Depois comecei a achar que ele mentia tanto que não conseguia perceber que mesmo dizendo para os outros que era gay, ele mentia. Não porque não fosse gay, mas porque ainda não sabia quem era.
Melhor. Ele mentia com tanta propriedade que era justo quando mentia que falava de modo mais verdadeiro. Assim, não era quando estava com os outros que ele falava a verdade e sim quando estava comigo e mentia. Porque a verdade dele não era um conteúdo qualquer e sim o próprio ato de mentir.
Foi nessa mentira que vivemos alguns bons meses. E nisso não éramos exceção. Não chegávamos a ser uma regra, mas éramos como grande parte dos homens que gostam de homens.
De tudo, ficou tatuada na minha coxa aquela pressão. Nenhum de nossos abraços, nenhum de nossos beijos, nenhuma de nossas noites de sexo, nenhum gozo me marcou mais do que a pressão de sua mão direita sobre a minha coxa esquerda.
Às vezes acho que fui infeliz e que não é rara a minúcia indelével.
Mas isso foi há muito tempo. E nós? Pergunto-me se menti tanto assim para você. Eu que já vi você totalmente nua, assim, despreocupadamente desejando estar despida diante de mim. Mas como a vida assemelha-se a uma imagem de Escher, digo que talvez você tenha despreocupadamente realizado o que eu desejava ardentemente.
E assim vagamos. Estarmos nus, um diante do outro. Talvez isso não seja possível. Você deseja estar com Caio e eu desejo um outro homem. Talvez. Quase sempre  e sempre quase.
E assim vislumbro que o mais importante é nos desnudarmos. Jamais somos inteiramente aquilo que somos. Sempre sobra e falta.
Cai o rosto, a roupa, a máscara. Cai. Não sou mais Caio. Não sou, mas caio.
De tudo o que se passa entre nós, guardo a sua confiança. Suas palavras, seu carinho, sua beleza ficam; comigo segue apenas a sua confiança.
Venha me ver aonde eu sou o que sobra e o que falta de mim. Venha me ver aqui, um pouco ao sul, alto, perto do céu. E você vai descobrir que já me conhecia. E você vai descobrir que ainda falta muito para me descobrir.
Abraço do homem que te ama.
Pode me chamar de Alberto Tibaji.