domingo, 8 de julho de 2018


Querida Anita.

Quando acordei, ele havia dependurado nossas horas no varal e partido. O sol de inverno e o vento seco se lançavam sobre as horas estendidas. Eram todas tecido leve e tremulavam na manhã fria do meu quintal. Eu estava só. Vi, de imediato, apesar de estarem perto do cinza da parede do fundo, as horas em que, com a ponta dos dedos, ele desenhou, em movimentos circulares, a bagunça dos meus cabelos. Inúmeros anéis dos – talvez nossos – cabelos, espécies de alianças suspensas, agitavam-se naquela manhã. Minha sensação é de que a pressa ou quem sabe o medo de que eu acordasse e o surpreendesse, obrigaram-no a pendurar essas horas sem o devido cuidado. E lá ficaram, toalhas amarfanhadas e úmidas, perto do ora pro nobis e de seus espinhos que crescem no fundo do terreno. Ao contrário, esticadas ao máximo, quase além do limite, as horas em que ele me abraçou balançavam pesadamente, como um gigantesco lençol, cujas marcas noturnas nenhum sol apagará. Os abraços desfraldados ocupavam a maior parte do quintal, mas nem por isso me impediram de ver outras horas dependuradas como roupas íntimas de mulher que se envergonha de exibir aquilo que cobre o que dizem ser o mais secreto. Num canto, de modo que um visitante jamais repararia, ele pendurou as horas – ou deveria dizer –, os breves momentos, em que no meu carro, ele deslizou sua mão esquerda pelo jeans da minha calça. Essas horas – que duraram o tempo de alguns segundos – estavam para mim no lugar que correspondia ao meu afeto. Sim, porque desconcertado, sem saber o que fazer, e não querendo acreditar no que podia estar acontecendo, não consegui receber o carinho dispensado. Por fim, caídas sobre a grama verde do quintal, estavam as horas em que me falou dele: desejos, sonhos, brincadeiras, desenhos de sua vida, semelhantes a pequenas bonecas de pano, que enfeitam os quartos de tantas meninas desejosas de carinho. Antes do cair da tarde, recolhi uma a uma as horas que ele estendeu para que guardassem o calor e a força do tempo. Ao final, haverá ainda quem diga que há em tudo o que eu disse ao menos um erro. Como se chamar o nome dele pudesse sê-lo. Quem sabe?

Saldades,
Caio Marques

domingo, 25 de março de 2018


Querida Anita,

Quantas perguntas cujas respostas vêm emaranhadas no texto da tua carta. Leio.

Tantas letras minúsculas. Maiúsculas a alternativa e a adição, porque o “Ou” me importa, conduz-me a novos horizontes, leva-me pela mão a um ponto de conversão do olhar enquanto o “E” diz-me que essa volta, esse giro do olhar é mais uma possibilidade a ser acolhida, e ambas, alternativa e adição, são abrigo porque meu saber abraça minha ignorância, cada um dando e recebendo do outro, num movimento dinâmico e solidário. É na conjugação de saber e ignorar que te escrevo.

Quantas vezes repetiste que não sabes? Será que não sabes? Ou sabes até o limite do que ignoras, o limite do não-saber? E sabes que há um limite do saber, tempero delicado que perfuma e dá sabor ao que experimentamos.

Quero compartilhar contigo minha experiência com as palavras e propor uma alternativa às pontes que conduzem da luz para a escuridão, numa via de mão dupla.

Estamos nos aproximando do fim da quaresma. E tantas pessoas pensam em uma só figura. Ando pelas ruas da cidade em que habito e fascinam-me tantos os sentidos das mãos: suplico, peço perdão, confesso meus pecados, arrependo-me, reconheço meu tamanho, busco, abraço, aperto, afago, roço, mal chego a tocar.

Desejo de tocar. Seu corpo. A materialidade de um corpo que não sei dizer se é dele, de quem é. Pergunto-me se um corpo pode pertencer a alguém. E sei dos assíduos abusos e violações diligentemente praticados por tantas gentes, homens esmagadora maioria. Desejo de tocá-lo. Seu corpo.  Materialidade que encarna. O quê exatamente? Vejo-o deitado. Descubro que lhe pertenço, que basta dirigir-me para ele, que já sou seu. Estou dentro dele. E é ele que me possui. Ele me abarca. Dilato-me. E ele sobeja. Voláteis, as fronteiras evaporam e formam nuvens nesse lugar algum que chamamos de firmamento. Ali estamos. No firmamento. E para que ele esteja em mim, basta um leve movimento do pescoço, olhar de esguelha, conversão, giro, sutil genuflexão, curiosidade. Sinto quando ele se dilata em mim e sou eu que sobejo nessa hora. Ele está dentro de mim e sou eu que o possuo.

Não trafego entre a luz e a escuridão. Eis a metáfora que não me encanta. E percebi como eu também me deixei seduzir pelo jogo da luz e da escuridão, canto de sereia que me desviou da palavra.

As palavras são oferendas de sentidos; atos, sim, atos em que simultaneamente agradecemos o que recebemos e colocamos à disposição de outras pessoas aquilo que trazemos.

Por isso, no fim da tua carta, agradeces em maiúsculas três vezes. Não me agradeces. Agradeces transitivamente: as palavras, a experiência. E encerras a carta agradecendo intransitivamente, sem complementos, ainda que a gramática não te autorize.

Serei franco: a clareza e a escuridão são um truque que se perpetua há séculos para reduzir nosso corpo e nossa mente ao olhar. Saber e ignorar de há muito clamam por outras figuras. A nós, missivistas incorrigíveis, a tarefa de escrevê-las.

Todo seu,
Caio Marques.

quarta-feira, 7 de março de 2018


Querida Anita Lopes.

Faz tempo. Como admiro essa expressão ‘faz tempo’: a ideia de fazer tempo.

Escrevo-te e ao mesmo tempo em que traço as palavras no papel, vou dizendo-as em voz alta. Escrevo assim: em alto e bom som. E na minha boca, enquanto move-se a língua úmida, são tantos seixos coloridos que se remoem. E nesse remoer, ouço o som dos seixos que roçam uns nos outros, brilha a faísca inaugural das pequenas pedras que se batem e não sei mais em que língua falo e escrevo. A língua materna empena e nas fissuras alojam-se línguas de curta duração, línguas inexpugnáveis, línguas imprestáveis, línguas bárbaras, línguas compreensíveis apenas daqui para ali, e, mais adiante, aquela mesma palavra dita pela mesma pessoa não oferece mais qualquer sentido.

Queria te escrever sobre seriedades: museu, parque, Lygia Pape, literatura, amor. Escrevo e risco, e desgosto.

A sala está negra. Estou no breu. Os filamentos distendidos parecem fachos de luz, que alumiam. Às vezes vejo suas pontas; amarradas em pregos no chão, formando quadrados. Leves, as sombras dos filamentos. A sala está negra. Estou no breu. Os fios materializam conexões e conduzem a energia que tornará a obra visível. Mas o fio é também corte, como se o breu tivesse sido talhado à faca. A incisão é uma espécie de fibra que dá musculatura à poesia. Escrevo e risco, e corto. E cada talho descobre um fluxo de vida. Salve, Lygia Pape!

As palavras distendidas parecem fachos de luz, que alumiam. Às vezes vejo suas pontas, amarradas em pregos no chão. Leves, as sombras das palavras. A sala está negra. Estou no breu. As palavras materializam conexões e conduzem a energia que tornará a carta legível. Mas a palavra é também corte, como se o breu tivesse sido entalhado à faca. A incisão é uma espécie de fibra, que dá musculatura à poesia. Escrevo, e risco, e gosto. Mesmo daquilo que desgosto, gosto. Um amor pela fibra da palavra, pelo corte da escrita, pelo fio da carta.

Anita, encontrei um guarda-chuva num poema. Faz tempo. Descobri depois que era uma oferenda. O tempo fechou e a chuva obstinada inundou minha boca de seixos. Percebi, então, que é isso o que as palavras fazem, oferecem sentidos, oferendas de sentidos.

Assim como à beira-mar deposito flores para Iemanjá, ofereço essas palavras no mar dos seus olhos, agradecimento e pedido, esperança e satisfação.

Todo seu,
Caio Marques