Querida Anita,
Quantas perguntas cujas respostas vêm emaranhadas no texto
da tua carta. Leio.
Tantas letras minúsculas. Maiúsculas a alternativa e a adição,
porque o “Ou” me importa, conduz-me a novos horizontes, leva-me pela mão a um
ponto de conversão do olhar enquanto o “E” diz-me que essa volta, esse giro do
olhar é mais uma possibilidade a ser acolhida, e ambas, alternativa e adição,
são abrigo porque meu saber abraça minha ignorância, cada um dando e recebendo do
outro, num movimento dinâmico e solidário. É na conjugação de saber e ignorar
que te escrevo.
Quantas vezes repetiste que não sabes? Será que não sabes?
Ou sabes até o limite do que ignoras, o limite do não-saber? E sabes que há um
limite do saber, tempero delicado que perfuma e dá sabor ao que experimentamos.
Quero compartilhar contigo minha experiência com as palavras
e propor uma alternativa às pontes que conduzem da luz para a escuridão, numa
via de mão dupla.
Estamos nos aproximando do fim da quaresma. E tantas pessoas
pensam em uma só figura. Ando pelas ruas da cidade em que habito e fascinam-me
tantos os sentidos das mãos: suplico, peço perdão, confesso meus pecados,
arrependo-me, reconheço meu tamanho, busco, abraço, aperto, afago, roço, mal
chego a tocar.
Desejo de tocar. Seu corpo. A materialidade de um corpo que
não sei dizer se é dele, de quem é. Pergunto-me se um corpo pode pertencer a
alguém. E sei dos assíduos abusos e violações diligentemente praticados por
tantas gentes, homens esmagadora maioria. Desejo de tocá-lo. Seu corpo. Materialidade que encarna. O quê exatamente?
Vejo-o deitado. Descubro que lhe pertenço, que basta dirigir-me para ele, que
já sou seu. Estou dentro dele. E é ele que me possui. Ele me abarca. Dilato-me.
E ele sobeja. Voláteis, as fronteiras evaporam e formam nuvens nesse lugar
algum que chamamos de firmamento. Ali estamos. No firmamento. E para que ele
esteja em mim, basta um leve movimento do pescoço, olhar de esguelha,
conversão, giro, sutil genuflexão, curiosidade. Sinto quando ele se dilata em
mim e sou eu que sobejo nessa hora. Ele está dentro de mim e sou eu que o
possuo.
Não trafego entre a luz e a escuridão. Eis a metáfora que
não me encanta. E percebi como eu também me deixei seduzir pelo jogo da luz e
da escuridão, canto de sereia que me desviou da palavra.
As palavras são oferendas de sentidos; atos, sim, atos em
que simultaneamente agradecemos o que recebemos e colocamos à disposição de outras
pessoas aquilo que trazemos.
Por isso, no fim da tua carta, agradeces em maiúsculas três
vezes. Não me agradeces. Agradeces transitivamente: as palavras, a experiência.
E encerras a carta agradecendo intransitivamente, sem complementos, ainda que a
gramática não te autorize.
Serei franco: a clareza e a escuridão são um truque que se
perpetua há séculos para reduzir nosso corpo e nossa mente ao olhar. Saber e
ignorar de há muito clamam por outras figuras. A nós, missivistas
incorrigíveis, a tarefa de escrevê-las.
Todo seu,
Caio Marques.