domingo, 30 de junho de 2019

Querida Anita.

Depois de sua última carta, ergueu-se em mim um coro de lembranças decepadas e desassistidas clamando por um lugar em que pudessem estar, ao menos, próximas umas das outras, talvez desordenadamente amontoadas, mas agregadas pelo calor de uma vida em suspenso. E não pude deixar de pensar no famoso texto de Pirandello em que adentram na realidade da sala de teatro seis personagens que buscam ardorosamente um autor que conte sua história. Assim, vieram-me as lembranças, em busca de alguém que as rememorasse, como se fossem todas as partes de um herói, disjuntado ao longo da estrada, em tantos sentidos real, exigindo com tranquilidade a oportunidade de repousarem num lugar, em tantos sentidos, imaginário e possível.

Ainda não sei se esta carta é o bastante para fazer ver que essas lembranças evaporadas estão arquivadas numa nuvem de onde choverão ao apelo de uma dança xamânica, executada por um missivista qualquer.

Lembrei, então, da vez em que ele me disse que éramos seminamorados. Irascível, calei-me. Não foi muito difícil para ele ouvir meu silêncio. Sei que você pode imaginar o que senti, e quantas vezes isso floresceu entre nós.

Deitado no divã, esbravejei com meu psicanalista: medo, desrespeito, cansaço, impaciência, desejo. Ondas de afetos arrebentavam nas areias silenciosas e insensíveis do meu psicanalista. Era assim que eu sentia. Estava arrasado. Então, quase como por diversão, ele começou a falar. Perguntou-me quem era o seminamorado da relação; quem estava por inteiro e onde; o que era ser inteiro; qual o significado de seminu, semiárido, semivivo, semimorto, semi-analfabeto, semifinal. Inicialmente, a contragosto, percebi como era enganoso me colocar como aquele que estava inteiro na relação enquanto o outro era aquele que só se entregava pela metade, só estava pela metade. Eu, corajosamente inteiro; ele, covardemente metade, semi-. E lembrei das partes cravadas ao longo da estrada real. Um corpo de ideias, covardemente disjuntado, resultado de sua insistência num mundo em que mais gentes pudessem se sentir gente. Estar em partes não era o que eu corriqueiramente entendia. Um semi-analfabeto pode ser um adulto ciente de seus limites, satisfeito por seus grandes feitos, a caminho de um lugar em que não necessariamente estará para sempre alfabetizado.

Ser um seminamorado podia significar a possibilidade de encontrar pela estrada outro seminamorado, em tantos sentidos real, e caminharmos lado a lado, vendo faltas, excessos, ímpetos, medos, silêncios, horizontes; percebendo os desejos de desver, de desler e de desdizer; e sabendo que em partes somos e em partes não somos. Não haverá soma final antes de estarmos ao lado de quem amamos, nem durante ou depois.

Ao fim da sessão, ergui-me determinado: telefonaria e iria chamá-lo de seminamorado. Meu psicanalista não se moveu nem se levantou da cadeira. Disse, antes que eu atravessasse a soleira da porta, “não esteja inteiramente em partes”.

No fim da tarde, enquanto eu lavava a louça de um lanche qualquer, ele, meu seminamorado, aproximou-se e mostrou-me na voz de outra pessoa, um texto conhecido como “Quando o amor vacila”. Ouvi tudo de costas. Voltei-me. Olhei-o. Era e não era uma declaração de amor. Diante de mim, um seminamorado, de amor vacilante como a luz de um vagalume, fitava-me.

Anita, em matérias de amor sou semi-analfabeto e tenho dificuldades para lidar com os semitons. Meu temperamento semibárbaro afugenta todo aquele que de mim se aproxima.

Sei de que momento esta carta fala e sei que em parte guardo as lembranças preciosas de um passado que parece que foi ontem ou anteontem. Condenso-me nestas palavras. Chovo.

Daquele que ama,

Caio Marques.

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