sexta-feira, 14 de junho de 2019

Querida Anita.

Escrevo-te rapidamente para que me dês tua opinião.

Crês que podemos agraciar alguém com uma palavra?

Ontem foi o dia de Santo Antônio. Anteontem foi o dia dos namorados. Pensei em você. Creio que depois de tantos anos você não me incriminará por dizer isso. Ontem foi o dia de Santo Antônio. Anteontem foi o dia dos namorados. Pensei em você. Já encontrei um guarda-chuva num poema. Já tive uma palavra atravessada na garganta. Já choveu na palavra terra. Já perdi tantas agulhas no palheiro das minhas cartas. Já beijei a palavra você.

Mas anteontem, no jantar, ela me estendeu a mão e me agraciou com uma de suas palavras escritas. Não havia entrelinhas, não havia mapas. Como ler uma única palavra? Não havia frase, não havia parágrafo, não havia nem mesmo tom. Era uma única palavra escrita numa caligrafia que nem era a dela. Tirei os sapatos e comecei a caminhar pelo chão frio de pedra. Absorto pus-me a pensar na palavra solta. E me perguntei se ela estava mesmo solta, se era livre, na solidão da página branca. Estaria essa palavra mais livre do que qualquer palavra presa em minhas cartas? Seriam minhas cartas espécie de cárcere para cada palavra? Ou será que cada palavra só poderia estar livre, solta, na medida em que participasse de uma carta? E aquela palavra, na folha de papel branco, pertencia a algum texto? Será que eu estava querendo forçar aquela palavra a pertencer a algum texto? Ou era eu que não conseguia perceber a que texto, desde sua origem, ela já pertencia? Quando dei por mim, havia voltado para sua companhia. Calcei os sapatos. Deixamos o restaurante felizes e caminhamos pelas ruas desertas da cidade barroca. Depois de acompanhá-la até sua casa, regressei e aconcheguei-me debaixo de minhas cobertas.

Lembrei, então, que o dia terminara sem que ele me tivesse dirigido uma só palavra. Silêncio. Lembrei-me de você: “sou analfabeta em matéria de silêncios”. Estava só. Você jamais poderia me ajudar a compreender esse silêncio. Levantei-me, agasalhei-me o máximo que pude, e caminhei na madrugada fria, calçado, pelo bairro deserto. Por que ele compartilhara o silêncio? Como ler o silêncio? Qual a sua gramática? Talvez, no dia seguinte, ele abrisse as comportas da sua voz e me inundasse de palavras, mas eu estava aflito. Não sabia manusear seu silêncio. Seria esse silêncio uma pausa? O oposto da palavra? Um silêncio que não era palavra nem deixava de ser. Deixava ser. Deixava que eu fosse. Deixava? Ou me guardava dentro de si? Ou me deixava de fora? Fora do mundo dele, fora dos seus pensamentos, dos seus afetos? Ou me obrigava a ser uma palavra, diante de seu vazio? Quando dei por mim, estava de novo debaixo de minhas cobertas. E lembrei-me de novo de sua última carta: “silêncio é terreno fértil. Em se plantando tudo dá”.

Sim, você tem razão. Levantei-me, escrevi uma carta e plantei-a bem ali, no silêncio compartilhado por ele, à luz da lua crescente. Quanto à palavra com que fui agraciado, pendurei-a bem aqui, no texto desta carta, e, como um metrônomo, marca o andamento dos nossos silêncios, que caminham a esmo entre as palavras, conduzindo-as a todo sentido que escapa e por isso sobrevive.

Assim como você, não sou comedido. Talvez blasé. Ou cheio de empáfia. Arrogante mesmo. Perdoe-me se me estendi. Se a resposta à primeira pergunta que te fiz for afirmativa, ofereço-te entrega. Se for negativa, despeço-me.

Aquele que ainda ama,
Caio Marques

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