domingo, 9 de junho de 2019




Querida Anita.

Hoje está menos gelado. A brisa agradável e fria da manhã movimenta o dia. Ao longe latem os cachorros. Hoje não deve ser dia santo, os sinos não tocaram. O trem, há muito, apitou e deve ter deixado a estação. Fim de outono. Às vezes me vem você à lembrança. Frequentemente, confesso. A contragosto aprendi que cada um teima em sua sabedoria. Teimo agora na minha. Pela manhã, quando eventualmente preparo café, agradeço aos pretos velhos e às pretas velhas e peço sabedoria. Luz não. Sabedoria. Teimo. Persisto.

Num recanto de quem eu teimo ser, estou sentado a fazer planos e cálculos. Minha mesa, rodeada de livros, papéis, pastas e caixas, é o centro do futuro. Ali; ali está o centro do futuro. Basta, contudo, dirigir-me a outro recanto para perceber que o tempo não se reduz ao verão que virá, ou ao outono que finda. O tempo não se reduz. E pergunto-me se apenas eu fico ali sentado a fazer planos e cálculos.

Há alguém, bem à beira da janela, vestida de flores, desenhando paisagens. E se ela reparasse que cada paisagem também guarda sua vontade de esquadrinhar o mundo? Talvez percebesse que quem está sentada à beira da janela conversa com quem está rodeado de papéis.

Há também, um pouco mais afastado, um homem, de pé, de costas para uma parede cheia de equações e de rotas. Ao alcance da sua mão um mundo mágico, momentâneo e prazeroso, farto de presente. E se ele percebesse que a fartura do agora guarda o medo da fome de amanhã?

Eu, Caio Marques, queria ouvir a mulher e suas paisagens, o homem e sua fartura mágica, a criança amedrontada, a velha cheia de esperança, o adulto prepotente, o coveiro filósofo, a cozinheira fumando seu cigarro, o varredor que olha o córrego. E talvez tenha ouvido. Espero ter ouvido.

O apito do trem! De volta à estação. Quem tinha de ir foi e quem tinha de voltar voltou. E há quem quisesse ter ido, quem quisesse ter voltado. E não o fez. Tanta gente. E não há cálculo ou paisagem que nos permita chegar à derradeira estação. Nem esta carta. Talvez ela tenha permitido que alguém embarque. Ou desembarque!

Anita, se não for muito, peço que guarde esta carta. Quem sabe um dia, antes de embarcar - ou de desembarcar - , alguém a encontre e leia. E decida.

Daquele que ainda ama,
Caio Marques

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