quarta-feira, 7 de março de 2018


Querida Anita Lopes.

Faz tempo. Como admiro essa expressão ‘faz tempo’: a ideia de fazer tempo.

Escrevo-te e ao mesmo tempo em que traço as palavras no papel, vou dizendo-as em voz alta. Escrevo assim: em alto e bom som. E na minha boca, enquanto move-se a língua úmida, são tantos seixos coloridos que se remoem. E nesse remoer, ouço o som dos seixos que roçam uns nos outros, brilha a faísca inaugural das pequenas pedras que se batem e não sei mais em que língua falo e escrevo. A língua materna empena e nas fissuras alojam-se línguas de curta duração, línguas inexpugnáveis, línguas imprestáveis, línguas bárbaras, línguas compreensíveis apenas daqui para ali, e, mais adiante, aquela mesma palavra dita pela mesma pessoa não oferece mais qualquer sentido.

Queria te escrever sobre seriedades: museu, parque, Lygia Pape, literatura, amor. Escrevo e risco, e desgosto.

A sala está negra. Estou no breu. Os filamentos distendidos parecem fachos de luz, que alumiam. Às vezes vejo suas pontas; amarradas em pregos no chão, formando quadrados. Leves, as sombras dos filamentos. A sala está negra. Estou no breu. Os fios materializam conexões e conduzem a energia que tornará a obra visível. Mas o fio é também corte, como se o breu tivesse sido talhado à faca. A incisão é uma espécie de fibra que dá musculatura à poesia. Escrevo e risco, e corto. E cada talho descobre um fluxo de vida. Salve, Lygia Pape!

As palavras distendidas parecem fachos de luz, que alumiam. Às vezes vejo suas pontas, amarradas em pregos no chão. Leves, as sombras das palavras. A sala está negra. Estou no breu. As palavras materializam conexões e conduzem a energia que tornará a carta legível. Mas a palavra é também corte, como se o breu tivesse sido entalhado à faca. A incisão é uma espécie de fibra, que dá musculatura à poesia. Escrevo, e risco, e gosto. Mesmo daquilo que desgosto, gosto. Um amor pela fibra da palavra, pelo corte da escrita, pelo fio da carta.

Anita, encontrei um guarda-chuva num poema. Faz tempo. Descobri depois que era uma oferenda. O tempo fechou e a chuva obstinada inundou minha boca de seixos. Percebi, então, que é isso o que as palavras fazem, oferecem sentidos, oferendas de sentidos.

Assim como à beira-mar deposito flores para Iemanjá, ofereço essas palavras no mar dos seus olhos, agradecimento e pedido, esperança e satisfação.

Todo seu,
Caio Marques

Um comentário:

  1. Querido Caio, Anita receber a carta. Está sem palavras neste agora de tantas emergências. Ela abraçou o papel e as letras com sua leal amorosidade. Levantou os olhos em busca das imagens que ora aparecem ora se escondem no breu da sala. Anita ama as palavras, a luz, a sombra e agora também ama Lígia Pappe. Ela vai te escrever a resposta com o cuidado de quem prepara um doce, na exata medida de seu amor pelos seixos coloridos para agradar as línguas, todas elas.

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