domingo, 23 de novembro de 2014



A quem saberá esculpir o tempo

 por Alberto Tibaji
com a colaboração de Diego Domingos

II

Sim, estive no quarto dos meus desejos. Não, claro que não. Estive no meu quarto de desejos. Já houve quem se perguntasse se é possível dizer que os sonhos são meus. Eu me pergunto: e os desejos que brotam em mim, a quem pertencem? São apropriados para mim. Por mim?

Caminho numa casa. Não sei como entrei nela. Haverá talvez um dia uma porta de entrada, uma janela escancarada ou um muro e mil possibilidades de saltá-lo. Terei entrado na casa. No momento, estou nela e não percebo o fora. Ando pelos cômodos: objetos tridimensionais estranhos, sem forma reconhecível. Lembra um museu. Pinturas de vários tipos por toda parte. Melhor, quadros. Não, pinturas mesmo. Numa delas, um belíssimo navio naufraga. Não, um navio naufraga belissimamente. Um navio a velas adentra a vastidão do mar. Sim, tudo o que se pode ver do navio a velas brilha por sobre a vastidão da superfície do oceano. A vastidão da superfície. Noutro cômodo, as paredes, as pinturas, tudo coberto de pelos. Deslizo minhas mãos. Para mim, é braile. Um texto que só pode ser lido enquanto textura, como se não houvesse distância, e há. Distância, quero dizer, distância. Se eu fosse fotógrafo, fotografaria esse ‘como se’. Anoto no meu diário que preciso escrever sobre a vastidão da superfície e sobre a vastidão da profundidade. Continuo a esmo. Como se estivesse num museu. Volto ao cômodo de que até então mais gostei. Prossigo. A velha senhora, não sei bem, me guardava. Anoto no meu diário que isso me aflige. Seu olhar me aflige. Quero voltar mais uma vez ao cômodo de que mais gostei. Estou num museu e é como se fosse um labirinto. Não encontro o cômodo. Anoto: e se não conseguir mais sair daqui? Estou preso na casa em que estive no meu quarto de desejos. Talvez tudo tenha sido um sonho. Estou acordado, escrevendo. É como se fosse um texto. Não, o texto é como se fosse um sonho. Melhor, o sonho será como se fosse um texto. Um texto teatral escrito para que um ator deitado e acordado represente um papel que foi escrito para ele. Quero dizer, para mim. Repito: sim, estive no quarto dos meus desejos. Não, claro que não. Estive no meu quarto de desejos. E percebi que não desejo objetos, desejo sujeitos. Melhor, desejo a vastidão fulgurante de cada olhar. Quero dizer, cada olhar como se fosse voragem. Mas só vou entender isso, depois de ter sido aquecido pela luz intermitente do seu olhar. Então vou poder te dizer: quando encontrar a velha senhora, mande lembranças.


I

Você precisa me ouvir. Foi assim que comecei a ligação. Desculpe, mas ontem, quando dei por mim, já não dava mais conta de mim. Avancei o sinal e escorreguei sorrateiro minha mão por debaixo do seu vestido vermelho, na certeza de que alcançaria seu sexo. Mas suas pernas brancas, lençóis de linho egípcio, macias e quase sem pelos, pareciam não ter fim. E de repente encontrei seus olhos. Entrefechados. Sentia seus cílios roçarem a palma da minha mão a cada vez que piscavam e a luz doce dos seus olhos, que emanava intermitente, aquecia meus dedos na noite fria. Perdão, deslizei minha outra mão para debaixo do seu vestido vermelho e mais impetuoso. Não dava conta de mim e deslembrei que estávamos num bar, na mesa, entre amigos. E estranhos à nossa volta. Ávido, agarrei seu braço direito, que outro dia me puxara para si e me abraçara reclinado sobre seu peito. Você, de pele tão alva. E mergulhei na sua geografia. Um dia ainda vou desenhar um mapa do seu corpo do momento em que te toco. Ontem, quando deslizei minhas mãos sob seu vestido vermelho, senti suas longas pernas e logo acima, seus ouvidos, infindáveis labirintos que penetrei com minha voz. Depois dos ouvidos, o abdômen e no abdômen, a boca. E senti firmemente a leveza de um hálito no outro. Quando achei que estava nas suas costas era seu peito que eu alcançava, alvo, seu peito, alvo. Despreocupei-me e quando achava que tocaria sua perna era um pescoço faminto que eu encontrava e quando achava que era seu ombro, segurava firme seus dedos das mãos. E descia minhas mãos pelas suas costas e não dava em suas nádegas, mas na sua língua molhada e tranquila. E acariciava os anéis dos seus cabelos e não era o seu rosto que se seguia, mas o odor do suor das suas axilas. Nada estava no lugar em que se imagina estar. Seu vestido vermelho magicamente embaralhou sua habitual geografia. E quando dei por mim, você estava na minha cama, me olhando fixamente. Desacordei. As mãos molhadas de um gozo que eu não sabia se era seu ou meu acompanharam meu despertar. E sentei-me, só, entre os lençóis, e vi que você era minha zona proibida, e que eu, guiado por um Stalker espectral, saído do filme de Tarkovski, em algum momento, estive no quarto dos desejos.


IV
E se eu te dissesse que tudo o que eu mais queria era que nós estivéssemos exatamente lá, sentados na mesma areia, para que ao final você se levantasse bem lentamente e repetisse: esquece essa mulher, vamos mergulhar na vida, queeridx!

Mais tarde, entramos no mar. Eu ainda não sei dizer que criança era mais velha que a outra, mas consigo afirmar que de um momento para o outro eles se olhavam e novamente faziam de seus olhos um novo espelho... Espelho d'água. Espelho d'alma. Espelho de trava. Travas femininas de formas masculinas e almas delicadamente abruptas.

Ficamos um bom tempo apenas nos olhando. A conversa estava pesada demais. Não saberia dizer quem estava mais confuso: os mesmos olhos, inversamente refletidos defronte ao espelho de um bar qualquer. As poucas coisas que eu conseguia ler em seus olhos, que naquele momento eram meus, não importam mais. Ele estava tão confuso quanto os fios soltos de seu cabelo que não se fixava, mesmo com o excesso de laquê que sua mãe insistia em usar para penteá-los. Linda figura. Engana-se quem pensa que a beleza não fere. Arrisco dizer que sua maior aberração eram os olhos alheios a ele, as línguas que ele ainda não dominava ou simplesmente o encaixe imperfeito de seus olhos com seu espelho. Uma linda aberração nascendo bem diante de meus olhos. Um queer de natureza própria. Um queer “tipo exportação”. Queer por excelência.

Diante do mesmo espelho ele contava sobre algumas imagens que encontrara pela vida, lembrou-se nada emocionado do mergulho que nunca tinha dado na piscina do seu Ramos e seus olhos brilhavam quando apontava para o Gabinete Real. As palavras sempre o seduziram, mas brilho intenso mesmo era quando se lembrava dos vários quadrinhos que durante muito tempo serviram-lhe como quintal de casa, fuga rápida da vizinhança. Ele também ama tapioca. Não qualquer tapioca, dizia ele.

Só uma coisa: vez e outra ele tinha o sotaque de seu ex-nome. Divertia-se ao se lembrar [ironia mesmo era ele se lembrar] de cartas, castelos e famílias portuguesas. Mais uma coisa: ele não é vascaíno.


V
Texto enfatuado. Já houve quem perguntasse se é possível dizer que os sonhos são meus. Eu me pergunto: e o texto que escrevo, a quem pertence? É apropriado para mim. Por mim. Meu filho mais velho me diz que escrever utilizando dicionários é trapacear na escrita. Ele não sabe que o trecho IV deste texto foi escrito por Diego Domingos e que roubei o texto que ele escreveu sobre mim. Um texto apropriado para mim. Por mim. Nada está no lugar em que Diego imaginou estar. Who queers?

Não é possível dizer tudo. Por muitos e variados motivos. Às vezes não é apropriado dizer. Talvez toda palavra seja no mesmo tempo desnecessária e inevitável. Sei não. Mas tenho a sensação de que sim.

Não é possível dizer tudo. Enquanto isso, seguimos refugiados nas palavras. Como se elas nos protegessem, garantissem nossa segurança.

Olho à minha volta e vejo crescer incessante a dificuldade de lidar com os desejos. Dobro a esquina e vejo um bêbado refugiado em sua palavra: a dizer o que nem sabe que diz, a dizer o que queria dizer e não tem coragem de dizer porque é verdade doída, porque é fraqueza admitida, porque é raiva, vingança destampada. Vejo também uma mulher apaixonada, refugiada em sua palavra: a dizer o que nem sabe que diz, a dizer que sente a dor da ausência, que sente a dor do desencontro, e é o medo do encontro que teme, o medo de largar a certeza de uma história pela incerteza de um verdadeiro encontro.

O bêbado e a apaixonada acreditam na propriedade dos desejos, acreditam que são os donos de seus desejos, que os desejos são seus.

No meu caso, o quarto é que é meu: ali confabulamos, negociamos, trapaceamos, nos rendemos, nos surpreendemos. Os desejos e eu. Não sou um refugiado. Estive – ou estou – no meu quarto de desejos. Apropriados por mim. Um mim que não pré-existe à apropriação nem ao desejo, mas que vai se minstituindo a cada apropriação.

E assim, por vezes, meus desejos são sonhos, meus sonhos são textos e meus textos são desejos. E quando acho que cheguei ao fim de um texto foi um desejo que realizei, e quando acho que foi um sonho que tive, foi um texto que escrevi e quando acho que foi um desejo que senti, foi um sonho que sonhei. E nada está no lugar que você imagina que deveria estar: e há momentos em que não há mais nada a dizer.

III
04:35 da manhã. Sonho. Sua mãe te conduz à Praia de Copacabana. Velha senhora. O ônibus pára. Desce uma mulher. Você e sua mãe descem em seguida. Você não devia ter me contado esse sonho. Ele é apropriado para mim. Por mim. Todo o caminho a mulher segue à sua frente. Vocês estão indo a um entrelugar, discreto promontório, entre duas praias. É madrugada. Não se vê muito. Você tem medo. A velha senhora segue e te conduz à sua revelia. Perdão, cariocas, em geral, misturam as pessoas. Você no seu terno, irritado, resmunga. Na rua, sobre a calçada, no meio do seu caminho, um agasalho. Você guarda consigo. Talvez pertença à mulher que segue à frente. Vocês estão atrás dela, mas não a seguem. A mulher parece simpática. Você guarda o ímpeto de perguntar se o agasalho lhe pertence. Não pergunta. Sua roupa é nitidamente masculina. E você? Na chegada ao promontório, a mulher que segue à frente sumiu. Você se desvencilha da sua mãe e segue seu próprio caminho. Não está atrás de ninguém. Segue à frente e só. O mar alcançou você. Seus pés, nos sapatos de couro marrom, afundam na areia. Talvez não seja apropriado vir à praia de terno. Você não se incomoda com o fato. Eis uma ironia da língua. Há uma nova velha senhora à sua frente. Você pede licença. Há outras pessoas. A passagem é estreita. Sinto como se fosse o meu corpo que roça o corpo da velha senhora, roça o corpo de outras pessoas na passagem estreita entre as rochas. De novo a leitura como textura. O contato com a vastidão da superfície e o erotismo da flor da pele. Tudo como se eu fosse você. Você não devia ter me contado o seu sonho.

Você está molhado, com água até o pescoço. Pela primeira vez neste texto você está feliz porque não se incomoda mais com estar de fato no mar, perdão, de terno no mar. De fato, você entrou no mar, ainda que, em geral, não seja apropriado. Mas você não está nem aí. Está dormindo e sonhando. E o sonho será como se fosse um texto. E este texto será um sonho de fato, palavras vestidas de um sentido improvável, sonho trajado de ficção, como se fosse um homem de terno que se banha no mar, como se de fato nada estivesse no lugar em que se imagina que deveria estar.

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