domingo, 25 de março de 2018


Querida Anita,

Quantas perguntas cujas respostas vêm emaranhadas no texto da tua carta. Leio.

Tantas letras minúsculas. Maiúsculas a alternativa e a adição, porque o “Ou” me importa, conduz-me a novos horizontes, leva-me pela mão a um ponto de conversão do olhar enquanto o “E” diz-me que essa volta, esse giro do olhar é mais uma possibilidade a ser acolhida, e ambas, alternativa e adição, são abrigo porque meu saber abraça minha ignorância, cada um dando e recebendo do outro, num movimento dinâmico e solidário. É na conjugação de saber e ignorar que te escrevo.

Quantas vezes repetiste que não sabes? Será que não sabes? Ou sabes até o limite do que ignoras, o limite do não-saber? E sabes que há um limite do saber, tempero delicado que perfuma e dá sabor ao que experimentamos.

Quero compartilhar contigo minha experiência com as palavras e propor uma alternativa às pontes que conduzem da luz para a escuridão, numa via de mão dupla.

Estamos nos aproximando do fim da quaresma. E tantas pessoas pensam em uma só figura. Ando pelas ruas da cidade em que habito e fascinam-me tantos os sentidos das mãos: suplico, peço perdão, confesso meus pecados, arrependo-me, reconheço meu tamanho, busco, abraço, aperto, afago, roço, mal chego a tocar.

Desejo de tocar. Seu corpo. A materialidade de um corpo que não sei dizer se é dele, de quem é. Pergunto-me se um corpo pode pertencer a alguém. E sei dos assíduos abusos e violações diligentemente praticados por tantas gentes, homens esmagadora maioria. Desejo de tocá-lo. Seu corpo.  Materialidade que encarna. O quê exatamente? Vejo-o deitado. Descubro que lhe pertenço, que basta dirigir-me para ele, que já sou seu. Estou dentro dele. E é ele que me possui. Ele me abarca. Dilato-me. E ele sobeja. Voláteis, as fronteiras evaporam e formam nuvens nesse lugar algum que chamamos de firmamento. Ali estamos. No firmamento. E para que ele esteja em mim, basta um leve movimento do pescoço, olhar de esguelha, conversão, giro, sutil genuflexão, curiosidade. Sinto quando ele se dilata em mim e sou eu que sobejo nessa hora. Ele está dentro de mim e sou eu que o possuo.

Não trafego entre a luz e a escuridão. Eis a metáfora que não me encanta. E percebi como eu também me deixei seduzir pelo jogo da luz e da escuridão, canto de sereia que me desviou da palavra.

As palavras são oferendas de sentidos; atos, sim, atos em que simultaneamente agradecemos o que recebemos e colocamos à disposição de outras pessoas aquilo que trazemos.

Por isso, no fim da tua carta, agradeces em maiúsculas três vezes. Não me agradeces. Agradeces transitivamente: as palavras, a experiência. E encerras a carta agradecendo intransitivamente, sem complementos, ainda que a gramática não te autorize.

Serei franco: a clareza e a escuridão são um truque que se perpetua há séculos para reduzir nosso corpo e nossa mente ao olhar. Saber e ignorar de há muito clamam por outras figuras. A nós, missivistas incorrigíveis, a tarefa de escrevê-las.

Todo seu,
Caio Marques.

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