quarta-feira, 30 de maio de 2012

Herança e origem




Alguns filhos se envergonham do seu pai. Outros admiram-no. Certamente há aqueles que sentem repulsa e há os que o idolatram.
Meu pai me deixou um muro. Muro alto, muito. Muro de arrimo. Sem ele nossa casa já teria desabado. Volto à casa em que nasci e o que encontro é esse muro, sustento da minha origem. E me impressiono. Meu pai não deixou fortuna. Nada que tenha mudado os rumos da ciência ou beneficiado a humanidade, mas sozinho ergueu isso que sustenta nossa casa. Não sei se desejo ser como ele, mas, se um dia tiver um filho, gostaria que ele soubesse do valor de coisas como esse muro de arrimo.
Dia desses sonhei que a casa era quase levada por uma chuva torrencial. As paredes começaram a rachar e minha avó materna nonagenária resolvia – e conseguia – segurar a parede da casa. No sonho ela me dizia que era ela quem deveria salvar a casa, já que era ela a responsável pelo desabamento.
Há muito tempo que não tento decifrar meus sonhos. Sei que eles não têm um significado misterioso, são uma espécie de propulsão para a elaboração de algumas vivências, sejam elas boas ou ruins.
Ora a impressão de um pai precavido e laborioso, arrimo de família, ora o medo e o espanto diante da avó, origem dos problemas e salvação dos mesmos.
Os dois gestos são fabulosos: um impressiona, o outro espanta.
Mas esse pai me deixou. Pouco importa se foi a morte que o levou, sinto-me só, abandonado. Essa avó me acolhe, até hoje, sinto-me protegido, compreendido no que sou.
A água torrencial que escorre pelo meu corpo, enquanto permaneço sentado nos degraus do alpendre da casa, lava minha alma. E talvez, talvez, eu não seja quem digo ser. E esse pai é pai de um outro homem, um pai que não foi levado pela morte, pai admirado pelo filho que, ainda assim, se sente só. E a avó materna, essa sim já falecida, de longos cabelos grisalhos, era aquela que com seu canto de sereia carregava o menino para um mundo de estórias.
Volto-me. Levanto dos degraus. Não és nem eu nem ele. És pedras figurando belo mosaico, palavras coloridas girando num caleidoscópio. Desço cuidadosamente a ladeira. Não há porque aguardar. Sem pressa,visivelmente confundo-me cada vez mais.
Caio Marques

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