Querida Anita.
Saudades. Hoje estou pela primeira vez na nova casa de Evandro.
Chegamos. Ele não entra. Precisa, como de rotina, parece, cumprimentar seu cachorro. Um cão velho e alegre que com seus olhos admiráveis e sua cauda inquieta declara seu amor por Evandro com uma frequência espantosa. Acho que alguém veio conversar com ele no portão. Vou entrando na casa com certa timidez. Sem aquele que deveria apresentá-la.
Uma casa é um corpo. Nem toda casa. A de Evandro é. Com órgãos, mas apenas ao primeiro contato. Depois, o aparelho digestivo, a estrutura mental, o aparelho respiratório, tudo some para dar lugar à força do que é o contato. Talvez porque Evandro tenha vivido infeliz durante seis meses numa casa aqui tão ao sul de onde você, Anita, vive, que agora precisava viver os sentidos da morada do jeito mais pleno que fosse possível. Sinto-me na intimidade de alguém. Sentar no sofá, abrir uma gaveta, olhar uma foto na parede é tocar nele, no que há de íntimo, como se eu estivesse indevidamente lendo seu diário.
O calor emana de toda parte.
O pijama está devidamente dobrado e guardado dentro da gaveta esquerda da porta do meio do guarda-roupas. Suas camisas, enfileiradas, voltadas todas, sem exceção, para o mesmo lado (e nisso nós diferimos porque as minhas, além de tudo, estão separadas por cores). Os muitos enfeites, dispostos sobre o aparador de modo regular e quase hierárquico. Estranhamente sua casa não é rígida. Evandro não é daqueles que mantêm tudo milimetricamente no lugar e que se irrita com alguém que retira os objetos da ordem arbitrária que ele lhes dá.
É uma casa sensata.
Aconchegante também.
E eu, que me sinto culpado com uma rapidez estrondosa, quando dou por mim, contaminei o sofá, a torneira, a maçaneta, a toalha de rosto – aquela com os dois nomes –, um porta-retratos e tanto mais; contaminei esse reino de sensatez com minha insensatez, com minha imaginação incontrolável, com um turbilhão de sonhos e de desejos incontornáveis, nos dois sentidos que a palavra contorno pode ter.
Ainda há caixas – poucas – a serem abertas.
O aquário, em lugar discreto na sala, teima. Saberei em breve que os peixes têm se recusado a nadar na vitrine.
Ainda não vi a bandeja de prata da qual ele nunca me falou, mas que tenho certeza existir em algum lugar da sua intimidade.
Entrou. Fechei o diário diante do olhar perplexo de Evandro. Sinto-me acusado de ser um homem doente, flagrado em plena compulsão pela palavra ou será mais interessante dizer flagrado pela palavra em plena compulsão?
Afeição forte por você,
Caio.
A Casa como espelho - Resposta a Caio
ResponderExcluir...A burca é pequena para mim. E como diria certo rabino sábio 'todo lugar em que a gente cresce, um dia fica pequeno' [e apertado].
Fica bem a ruminar esse diário lido, enquanto usufruo o prazer de minha mais nova janela [conto-te em próxima ocasião]...
http://blogdamariaclaudia.blogspot.com/2011/08/casa-como-espelho-resposta-caio.html