Às vezes, quando te escrevo, tudo se embaralha. Explico. Tenho a sensação de que você é muitas e muitos. Numa única missiva como esta, te nomeio – Anita – e nesse nome vivem muitas. Parece ficção. E não é . Talvez esse seja o sentido da amizade.
Será que nosso amor era realmente impossível? Será que nossos deslocamentos não passaram de subterfúgios para encerrar – eu ia dizer enterrar – aquilo que não poderia ter nascido e tendo nascido não poderia prosseguir? Não sei. E te digo com profundo prazer e desconforto: assumo este não saber, pois isso me faz totalmente humano. Hoje estou filósofo.
Alberto me emprestou hoje um livro que Maria Cláudia enviou de presente para ele: 360º, de Amanda Costa. É um livro sobre os aspectos astrológicos da obra de Caio (meu xará) Fernando Abreu.
Nele há várias cartas que Caio escreveu para Amanda. À parte todo o conteúdo astrológico, do qual não entendo patavina, as cartas são belíssimas. Leia, se puder.
E fiquei pensando no que significa escrever cartas nos dias de hoje. Sinto que nelas exercito certa memória literária e afetiva. Lembro das cartas que meu pai escrevia para minha mãe quando íamos para o norte (eis aí um indício para compreender minhas atitudes e ações); lembro da minha mãe lendo as cartas que meu pai escrevia; lembro das cartas que eu escrevi para Papai Noel; lembro das cartas que minha avó materna nos enviava; lembro dos cartões de Natal que eu escrevia no nome da minha família; lembro das cartas que meu pai recebia de seu amigo/irmão. E havia regras para escrever cartas: que tipo de pergunta se devia fazer; o que não devia ser perguntado; como encerrar uma carta; como iniciá-la e sobretudo a necessidade de responder ao que o outro havia afirmado ou perguntado.
E cá estamos nós. Sei que sou eu quem escrevo esta carta, mas na medida em que ela é para você – Anita –, ainda que você seja muitas e muitos, você, Anita, está aqui.
Acho que Alberto já te mencionou sobre Virgílio. Queria te contar sobre o que tenho vivido e quão intenso tem sido. Queria te escrever sobre minha vida, meu trabalho, meus pais, meus filhos, minhas expectativas, desejos, sonhos, lembranças, medos, obsessões e aí canso. Só de pensar. E lembro que sou um mero usurpador, que roubei o nome de alguém. E me perdi. E tudo o que eu disser, vai me soar falso. Soo falso. Mesmo, assim persisto [a vírgula é aí mesmo].
[Alberto me diz que há na relação entre dois homens uma dor que não é física; a cada transa – essa é a palavra que ele diz preferir –, ainda que não haja penetração, cada um toca, na sua própria medida, numa lesão íntima. E acrescenta: “como tanto na vida, tudo o que digo sobre essa lesão é odor, fumaça e eco”. Ele escreveu isso na dedicatória de um livro do Caio F. que ele me deu.]
No dia 20.06. 88, Caio F. escreveu para Amanda:
“Não consigo parar de te escrever.
Vou fazer um esforço.
Fiz.
Pronto, parei. Beijos”
Caio M.
Não pude deixar de correr em direção aos papéis e prontamente responder... em especial se falas do livro dela. Éramos ali - tu e eu - nas linhas de Caio [Fernando Abreu] para Amanda [Costa]. Embora tenha ficado fascinada, afastei-me daquelas letras. Por um instante senti-me desnuda diante do espelho. Alma revelada.
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