Querida Anita.
Não creio que haja possibilidade de eu vencer minha adicção. Nem sei se te invejo, não sei se quero vencê-la. 24h sem viver ficção? Se eu sou a maior ficção da minha vida? Seria um suicídio talvez. Para abandonar a ficção teria que te dizer meu verdadeiro nome. E qual é meu verdadeiro nome? Qual deles diz quem eu efetivamente sou? O nome que assina esta carta? Aquele que ouço, quando meus pais me chamam? O que consta na minha certidão de nascimento? Como diria Julieta, “What’s in a name? That which we call a rose/By any other name would smell as sweet”. Esse, a quem chamam Caio Marques, ainda que tenha outro nome, continuará a ser quem escreve estas palavras, tão reais quanto o terreno baldio da frente da minha casa.
Como escrever uma crônica dos afetos reais, se cada palavra escrita é uma enxurrada de sentidos, que arrasta consigo, raízes, folhas, detritos, brinquedos, lama, terra e tanto mais? Anita, querida, por um dia queria ser você e ver o mundo por seus olhos, com toda sua coragem. Mas vê, já vou eu criando uma nova ficção, um novo jogo, uma nova refração. Assim, renuncio aos poucos a isso que chamam de realidade em favor do ficcional. E seria tão simples vencer minha adicção. Bastaria talvez o simples gesto de abrir a mão e deixar a caneta cair. Um gesto.
E o que há num gesto? Quanto de carne há no gesto de escrever uma carta? Quanto de carne há no gesto de fazer um carinho? Quantas palavras num único gesto? O que constitui o peso da mão daquele que amo quando está pousada sobre meu corpo? Quanto de carne há aí? E de memória? E de palavras? Quanto de futuro pesa nesse gesto? A sombra de sua mão pesa sobre meu corpo? Suas cicatrizes serenam ao contato dos meus pelos?
Não, Anita. Não tenho condições de vencer minha adicção. É a palavra lábio, que mordo num beijo. É sobre a palavra arrepio que deslizo meus dedos. É na palavra abraço que me aqueço. E diante de mim, uma turba de palavras irrompe e inunda de sentidos o que sou.
Alegro-me que você tenha conseguido, ainda que por um dia, escrever a crônica dos afetos reais.
Eu não. Impossível. Nem meus trinta anos de análise, nem todos os textos que me abriram as janelas do mundo, nem todos os conselhos das pessoas que me amam me convenceram a abrir a porta do cômodo onde moram em mim os afetos reais. Alguém mais avisado diria que é porque sou eu quem mora nos afetos e bastaria tatear as paredes do cômodo por dentro.
Mas não. Não pretendo fazer a crônica dos meus afetos reais. Nem sei mais se saberia. E espero intensamente que ninguém leia esta carta, imbuído da certeza de que escrevo sobre alguém de real. Sou Caio Marques. Sou enquanto te escrevo. Tudo que é real, só existe para que a ficção seja.
Todo teu.
Caio Marques.
Ah, adorei!
ResponderExcluirQue bom!
Excluir