A quem
saberá esculpir o tempo
por Alberto Tibaji
com a colaboração de Diego Domingos
II
Sim, estive no quarto dos meus desejos. Não,
claro que não. Estive no meu quarto de desejos. Já houve quem se perguntasse se
é possível dizer que os sonhos são meus. Eu me pergunto: e os desejos que
brotam em mim, a quem pertencem? São apropriados para mim. Por mim?
Caminho numa casa. Não sei como entrei nela.
Haverá talvez um dia uma porta de entrada, uma janela escancarada ou um muro e
mil possibilidades de saltá-lo. Terei entrado na casa. No momento, estou nela e
não percebo o fora. Ando pelos cômodos: objetos tridimensionais estranhos, sem
forma reconhecível. Lembra um museu. Pinturas de vários tipos por toda parte.
Melhor, quadros. Não, pinturas mesmo. Numa delas, um belíssimo navio naufraga.
Não, um navio naufraga belissimamente. Um navio a velas adentra a vastidão do
mar. Sim, tudo o que se pode ver do navio a velas brilha por sobre a vastidão
da superfície do oceano. A vastidão da superfície. Noutro cômodo, as paredes,
as pinturas, tudo coberto de pelos. Deslizo minhas mãos. Para mim, é braile. Um
texto que só pode ser lido enquanto textura, como se não houvesse distância, e
há. Distância, quero dizer, distância. Se eu fosse fotógrafo, fotografaria esse
‘como se’. Anoto no meu diário que preciso escrever sobre a vastidão da
superfície e sobre a vastidão da profundidade. Continuo a esmo. Como se
estivesse num museu. Volto ao cômodo de que até então mais gostei. Prossigo. A
velha senhora, não sei bem, me guardava. Anoto no meu diário que isso me
aflige. Seu olhar me aflige. Quero voltar mais uma vez ao cômodo de que mais
gostei. Estou num museu e é como se fosse um labirinto. Não encontro o cômodo.
Anoto: e se não conseguir mais sair daqui? Estou preso na casa em que estive no
meu quarto de desejos. Talvez tudo tenha sido um sonho. Estou acordado,
escrevendo. É como se fosse um texto. Não, o texto é como se fosse um sonho.
Melhor, o sonho será como se fosse um texto. Um texto teatral escrito para que
um ator deitado e acordado represente um papel que foi escrito para ele. Quero
dizer, para mim. Repito: sim, estive no quarto dos meus desejos. Não, claro que
não. Estive no meu quarto de desejos. E percebi que não desejo objetos, desejo
sujeitos. Melhor, desejo a vastidão fulgurante de cada olhar. Quero dizer, cada
olhar como se fosse voragem. Mas só vou entender isso, depois de ter sido
aquecido pela luz intermitente do seu olhar. Então vou poder te dizer: quando
encontrar a velha senhora, mande lembranças.
I
Você precisa me ouvir. Foi assim que comecei a
ligação. Desculpe, mas ontem, quando dei por mim, já não dava mais conta de mim.
Avancei o sinal e escorreguei sorrateiro minha mão por debaixo do seu vestido
vermelho, na certeza de que alcançaria seu sexo. Mas suas pernas brancas,
lençóis de linho egípcio, macias e quase sem pelos, pareciam não ter fim. E de
repente encontrei seus olhos. Entrefechados. Sentia seus cílios roçarem a palma
da minha mão a cada vez que piscavam e a luz doce dos seus olhos, que emanava
intermitente, aquecia meus dedos na noite fria. Perdão, deslizei minha outra
mão para debaixo do seu vestido vermelho e mais impetuoso. Não dava conta de
mim e deslembrei que estávamos num bar, na mesa, entre amigos. E estranhos à
nossa volta. Ávido, agarrei seu braço direito, que outro dia me puxara para si
e me abraçara reclinado sobre seu peito. Você, de pele tão alva. E mergulhei na
sua geografia. Um dia ainda vou desenhar um mapa do seu corpo do momento em que
te toco. Ontem, quando deslizei minhas mãos sob seu vestido vermelho, senti
suas longas pernas e logo acima, seus ouvidos, infindáveis labirintos que
penetrei com minha voz. Depois dos ouvidos, o abdômen e no abdômen, a boca. E
senti firmemente a leveza de um hálito no outro. Quando achei que estava nas
suas costas era seu peito que eu alcançava, alvo, seu peito, alvo.
Despreocupei-me e quando achava que tocaria sua perna era um pescoço faminto
que eu encontrava e quando achava que era seu ombro, segurava firme seus dedos
das mãos. E descia minhas mãos pelas suas costas e não dava em suas nádegas,
mas na sua língua molhada e tranquila. E acariciava os anéis dos seus cabelos e
não era o seu rosto que se seguia, mas o odor do suor das suas axilas. Nada
estava no lugar em que se imagina estar. Seu vestido vermelho magicamente
embaralhou sua habitual geografia. E quando dei por mim, você estava na minha
cama, me olhando fixamente. Desacordei. As mãos molhadas de um gozo que eu não
sabia se era seu ou meu acompanharam meu despertar. E sentei-me, só, entre os
lençóis, e vi que você era minha zona proibida, e que eu, guiado por um Stalker
espectral, saído do filme de Tarkovski, em algum momento, estive no quarto dos
desejos.
IV
E se eu te dissesse que tudo o que eu mais
queria era que nós estivéssemos exatamente lá, sentados na mesma areia, para
que ao final você se levantasse bem lentamente e repetisse: esquece essa mulher,
vamos mergulhar na vida, queeridx!
Mais tarde,
entramos no mar. Eu ainda não sei dizer que criança era mais velha que a outra,
mas consigo afirmar que de um momento para o outro eles se olhavam e novamente
faziam de seus olhos um novo espelho... Espelho d'água. Espelho d'alma. Espelho
de trava. Travas femininas de formas masculinas e almas delicadamente abruptas.
Ficamos um
bom tempo apenas nos olhando. A conversa estava pesada demais. Não saberia
dizer quem estava mais confuso: os mesmos olhos, inversamente refletidos
defronte ao espelho de um bar qualquer. As poucas coisas que eu conseguia ler
em seus olhos, que naquele momento eram meus, não importam mais. Ele estava tão
confuso quanto os fios soltos de seu cabelo que não se fixava, mesmo com o
excesso de laquê que sua mãe insistia em usar para penteá-los. Linda figura.
Engana-se quem pensa que a beleza não fere. Arrisco dizer que sua maior
aberração eram os olhos alheios a ele, as línguas que ele ainda não dominava ou
simplesmente o encaixe imperfeito de seus olhos com seu espelho. Uma linda
aberração nascendo bem diante de meus olhos. Um queer de natureza própria. Um
queer “tipo exportação”. Queer por excelência.
Diante do
mesmo espelho ele contava sobre algumas imagens que encontrara pela vida,
lembrou-se nada emocionado do mergulho que nunca tinha dado na piscina do seu
Ramos e seus olhos brilhavam quando apontava para o Gabinete Real. As palavras
sempre o seduziram, mas brilho intenso mesmo era quando se lembrava dos vários
quadrinhos que durante muito tempo serviram-lhe como quintal de casa, fuga
rápida da vizinhança. Ele também ama tapioca. Não qualquer tapioca, dizia ele.
Só uma
coisa: vez e outra ele tinha o sotaque de seu ex-nome. Divertia-se ao se
lembrar [ironia mesmo era ele se lembrar] de cartas, castelos e famílias
portuguesas. Mais uma coisa: ele não é vascaíno.
V
Texto enfatuado. Já houve quem perguntasse se é
possível dizer que os sonhos são meus. Eu me pergunto: e o texto que escrevo, a
quem pertence? É apropriado para mim. Por mim. Meu filho mais velho me diz que
escrever utilizando dicionários é trapacear na escrita. Ele não sabe que o
trecho IV deste texto foi escrito por Diego Domingos e que roubei o texto que
ele escreveu sobre mim. Um texto apropriado para mim. Por mim. Nada está no
lugar em que Diego imaginou estar. Who queers?
Não é possível dizer tudo. Por muitos e
variados motivos. Às vezes não é apropriado dizer. Talvez toda palavra seja no
mesmo tempo desnecessária e inevitável. Sei não. Mas tenho a sensação de que
sim.
Não é possível dizer tudo. Enquanto isso,
seguimos refugiados nas palavras. Como se elas nos protegessem, garantissem
nossa segurança.
Olho à minha volta e vejo crescer incessante a
dificuldade de lidar com os desejos. Dobro a esquina e vejo um bêbado refugiado
em sua palavra: a dizer o que nem sabe que diz, a dizer o que queria dizer e
não tem coragem de dizer porque é verdade doída, porque é fraqueza admitida,
porque é raiva, vingança destampada. Vejo também uma mulher apaixonada,
refugiada em sua palavra: a dizer o que nem sabe que diz, a dizer que sente a
dor da ausência, que sente a dor do desencontro, e é o medo do encontro que
teme, o medo de largar a certeza de uma história pela incerteza de um verdadeiro
encontro.
O bêbado e a apaixonada acreditam na
propriedade dos desejos, acreditam que são os donos de seus desejos, que os
desejos são seus.
No meu caso, o quarto é que é meu: ali
confabulamos, negociamos, trapaceamos, nos rendemos, nos surpreendemos. Os
desejos e eu. Não sou um refugiado. Estive – ou estou – no meu quarto de
desejos. Apropriados por mim. Um mim que não pré-existe à apropriação nem ao
desejo, mas que vai se minstituindo a cada apropriação.
E assim, por vezes, meus desejos são sonhos,
meus sonhos são textos e meus textos são desejos. E quando acho que cheguei ao
fim de um texto foi um desejo que realizei, e quando acho que foi um sonho que
tive, foi um texto que escrevi e quando acho que foi um desejo que senti, foi
um sonho que sonhei. E nada está no lugar que você imagina que deveria estar: e
há momentos em que não há mais nada a dizer.
III
04:35 da manhã. Sonho. Sua mãe te conduz à
Praia de Copacabana. Velha senhora. O ônibus pára. Desce uma mulher. Você e sua
mãe descem em seguida. Você não devia ter me contado esse sonho. Ele é
apropriado para mim. Por mim. Todo o caminho a mulher segue à sua frente. Vocês
estão indo a um entrelugar, discreto promontório, entre duas praias. É
madrugada. Não se vê muito. Você tem medo. A velha senhora segue e te conduz à
sua revelia. Perdão, cariocas, em geral, misturam as pessoas. Você no seu
terno, irritado, resmunga. Na rua, sobre a calçada, no meio do seu caminho, um
agasalho. Você guarda consigo. Talvez pertença à mulher que segue à frente.
Vocês estão atrás dela, mas não a seguem. A mulher parece simpática. Você
guarda o ímpeto de perguntar se o agasalho lhe pertence. Não pergunta. Sua
roupa é nitidamente masculina. E você? Na chegada ao promontório, a mulher que
segue à frente sumiu. Você se desvencilha da sua mãe e segue seu próprio
caminho. Não está atrás de ninguém. Segue à frente e só. O mar alcançou você.
Seus pés, nos sapatos de couro marrom, afundam na areia. Talvez não seja
apropriado vir à praia de terno. Você não se incomoda com o fato. Eis uma
ironia da língua. Há uma nova velha senhora à sua frente. Você pede licença. Há
outras pessoas. A passagem é estreita. Sinto como se fosse o meu corpo que roça
o corpo da velha senhora, roça o corpo de outras pessoas na passagem estreita
entre as rochas. De novo a leitura como textura. O contato com a vastidão da
superfície e o erotismo da flor da pele. Tudo como se eu fosse você. Você não
devia ter me contado o seu sonho.
Você está molhado, com água até o pescoço. Pela
primeira vez neste texto você está feliz porque não se incomoda mais com estar
de fato no mar, perdão, de terno no mar. De fato, você entrou no mar, ainda que,
em geral, não seja apropriado. Mas você não está nem aí. Está dormindo e
sonhando. E o sonho será como se fosse um texto. E este texto será um sonho de
fato, palavras vestidas de um sentido improvável, sonho trajado de ficção, como
se fosse um homem de terno que se banha no mar, como se de fato nada estivesse
no lugar em que se imagina que deveria estar.
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