sábado, 3 de abril de 2021

 


Para Márcio Teixeira Saldanha

em toda sua negrura

 

 

Querida Sophia.

Terminei de ler seu ensaio. Obrigado. Há nele uma beleza nutriente, como uma fruta suculenta ou como um grão que estala na boca. O que sou nasce em suas palavras, emerjo nelas e elas correm como seiva nas artérias tumultuosas que me riscam. Fechei o ensaio e determinado e tranquilo, despi-me. Tateei meticulosamente meu corpo. Rio. Pergunto-me se o possessivo é apropriado. Estranho os possessivos com frequência: meus sonhos? Meus contos? Meus filhos? Meu corpo? Não se descortina para mim um sentido desses possessivos.

Primeiro sinto os pelos das pernas, do peito, dos braços. Em seguida pressiono mais um pouco e sinto a pele áspera macia enrugada seca. Aperto músculos, percebo seus formatos gorduras ossos. Há orifícios curvas depressões flacidez. Quando começa a nudez? Em que parte do corpo se localiza a nudez? Tirei a camisa. Estou nu? Tirei as calças. Estou nu? Estou de cuecas e meias plantado bem no meio do meu quarto. Estou nu? Se tiro as cuecas e fico só de meias, estou nu? Estaria a nudez entre as pernas de cada uma e de cada um de nós? Tirei as meias, enfim. Gosto de ver as veias salientes dos meus pés, gosto de pisar descalço as tábuas do chão da casa. E num espanto me dou conta de que hoje a nudez talvez não venha me visitar. No lugar onde estou, a sombra de um bordado lentamente se desloca sobre o meu corpo. É preciso tempo para percebê-lo. Abro as pernas o suficiente: cenho franzido, olhos devassadores. Tento em vão estar diante da nudez, daquela que chamariam de minha nudez. Mas é mesmo vão.

Detenho-me. Não sei escrever sem caminhar pela casa e eis-me em pelo no jardim da frente. Estou nu para quem passa.

A nudez é um modo de lidar com a verdade. Imaginamos por vergonha, culpa, esperança ou cansaço que há uma verdade nua. Imaginamos que haveria uma região, quem sabe a genital, na qual residiria, tranquila, a nudez. Mas aqui, de pernas abertas, devassando o que chamariam de nudez do meu corpo, sinto a vibração das suas palavras, Sophia, que, como barcos ancorados na praia, adernam suavemente ao movimento da maré, das ondas e dos ventos. Ainda não é chegada a hora de içar âncora.

Muita gente busca pôr a nu, para que não existam sombras, para que a claridade possa imperar. Pôr a nu: desentranhar, tirar do armário, fazer sair das sombras, tornar visível, desvelar.

Entranhei-me.

Tardaria, mas não faltaria. É Orfeu que assoma. Há anos me assombra. Há décadas. Há tempos. Assombração e assombro. Sombra, espectro. Assomou pelo rumor das colunas sendo erguidas em seu texto, Sophia. Assomou pelo orvalho noturno brotando das folhas. Assomou quando o bronze fez-se mais carne do que o mármore em suas palavras. Em sua aparição, Orfeu, em novíssima repetição, voltou-se. Blanchot diria que Orfeu quer ver Eurídice no cerne da noite, não na claridade do dia. O mais importante não é desentranhá-la do Hades, fazê-la sair da escuridão, desvelá-la, torná-la visível. O mais importante: voltar-se rumo à escuridão, ao impossível.

(Des)nudei-me. Sim, com toda a impossibilidade que carrega esse verbo. Com a ambiguidade desta última frase. Desnudei-me. A nudez enquanto verdade. E a verdade tem sido, Sophia, a cada dia, para mim, muito mais tátil do que visível.

Sophia, manda nudes!

Todo seu,

Caio Marques